Eu já fui uma mulher fácil, assim como você e todas as outras mulheres. A gente sempre esteve ali, ao alcance da mão de um homem que se acha no direito de tocar a gente, seja saindo de um elevador, andando na rua, dentro de um ônibus ou no trabalho. Beber numa boate então, é coisa que aparentemente não temos o direito de fazer porque nunca se sabe quando um qualquer ou famoso vai aparecer se achando no direito de nos usar para se sentir poderoso.
Eu duvido que qualquer mulher lendo isso não tenha sido assediada em algum momento da sua vida. Independente do seu peso, altura, cor do olho ou cabelo, sendo mais ou menos atraente conforme os padrões de beleza, você provavelmente já foi assediada, ou talvez já tenha sido mas não tenha percebido que foi.
Eu lembro da minha primeira vez, caminhando sozinha no final da tarde, do colégio pra casa, quando um grupo de meninos passou a mão, em bando, nas minhas pernas e bunda, e continuaram andando e rindo, enquanto eu fiquei parada, roxa de vergonha e raiva. Naquele momento pensei em várias coisas ao mesmo tempo: por que comigo? Será que alguém viu o que aconteceu? E se alguém viu, o que vão pensar de mim? Juntando o resto de dignidade que eu poderia ter aos 9 anos de idade, continuei caminhando pra casa acompanhada do medo e vergonha da minha família, já que a culpa era minha. Explico: semanas ou meses antes, não sei bem, implorei pra minha mãe encurtar a saia do uniforme da escola de freiras onde eu estudava, e que por recomendação das irmãs, ia até o joelho, mas que as meninas mais velhas e descoladas encurtavam. Então, como fui eu quem pediu pra encurtar a saia, a culpa era minha, óbvio! Cheguei em casa e não contei pra ninguém, pois a vergonha e a bronca seriam maiores do que o alívio de contar.
Também lembro do amigo distante da família, que aparecia para visitas na casa de praia, e que brincava de fazer cócegas fortes e doloridas, sempre passando a mão no meu corpo de criança, sem que eu quisesse. Quando esse velhaco chegava eu me escondia, mas sempre me obrigavam a voltar e dar Oi pra ele, pois era uma questão de educação. E sempre vinham as cócegas indesejadas e meu nojo e impotência, pois ninguém ligava para meus protestos. Para deixar claro, nunca fui violentada por essa pessoa, mas eu não gostava do jeito como ele me tocava e isso já deveria bastar para que ele não pudesse me tocar.
Teve também o dia em que, na adolescência, um amigo e confidente, daqueles de andar sempre junto, que sabia dos meus crushes e se dizia meu amigão, me levou para ver o pôr do sol num lugar lindo e, dentro do carro, me beijou de surpresa e com força, enfiando o que pareciam ser quinze mãos por todos os lados. Quando gritei e comecei a chorar ameaçando sair do carro, ele parou e me levou pra casa em silêncio e visivelmente bem brabo. A amizade, que talvez nunca tenha existido, acabou, e nunca mais vi o sujeito.
Dessas experiências vieram outras em diferentes idades e graus de assédio. Pequenos acontecimentos, com os quais eu ficava incomodada, mas aí eu já tinha criado, inconscientemente, um escudo invisível contra pessoas inconvenientes.
Alguns anos atrás eu estava morando nos Estados Unidos na época do surgimento do movimento Me Too. Durante um almoço com pessoas de diferentes nacionalidades, uma amiga catarinense disse que nós, brasileiras, somos constantemente assediadas e sabemos lidar com isso sem precisar de leis, movimentos ou mimimis pra nos defender. Ela pediu minha concordância, mas não consegui verbalizar naquele momento, com bons argumentos, porque não concordava com ela. O assunto, no entanto, não saiu da minha mente, e me dei conta que, assim como eu, ela tinha criado um escudo invisível contra o assédio. Mas a verdade é que ignorar um problema não é resolver.
Apesar de ser muito errado, foi assim que a maioria da minha geração foi criada. Todos os assédios que sofremos, aprendemos, na mesma proporção, como disse minha amiga, a aguentar, achar normal e até defender, sendo qualquer movimento contrário um mimimi. Aprendemos a nos sentir culpadas pelo tamanho da saia, pela maquiagem, por ter bebido demais, por estar em companhias erradas, pelas pessoas em quem confiamos, por sair sozinha, por estar na hora errada e no lugar errado. Aprendemos a questionar nossa memória e duvidar dos sinais de alerta para algo que nos incomoda. Aprendemos a duvidar das vítimas e defender homens minimizando seus atos pois foram criados assim, não sabem o que estão fazendo, são infantis, doentes ou foram provocados para agir como agiram.
Passou da hora de falar e agir diferente do que o que era considerado normal sobre consentimento e limites do corpo da mulher. Vamos ensinar as mulheres de todas as idades a falar sem vergonha do que as incomoda, escutar e acolher as histórias e queixas sem desdenhar dos seus sentimentos e questionar imediatamente sua veracidade. Vamos ensinar os homens de todas as idades a respeitar o corpo alheio mostrando também que seus atos têm consequências.
Eu acredito que a educação, através de novos comportamentos e exemplos, leis, movimentos, barulheira e mimimi, vão mostrar para os homens que não se dá um ‘Pedala Robinho’ no corpo de uma mulher impunemente, seja ele quem for.
Ilustração: Iotti, especial para a coluna.
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