Nada mais impactante, para confirmar o grão de areia que somos dentro da complexa formação do cosmos, do que as imagens divulgadas esta semana pelo telescópio James Webb. No espaço desde o último 25 de dezembro, em uma parceria da NASA com a Agência Espacial Europeia e a Agência Espacial Canadense, o equipamento de US$ 10 bilhões traz evidências capazes de tocar os mais insensíveis. O telescópio espacial poderá investigar eventos que aconteceram logo após o Big Bang, a grande explosão que teria dado origem ao universo, o berço das estrelas que nasceram, vejam só, há cerca de 13,8 bilhões de anos. Não sei vocês, mas minha imaginação nem alcança fazer essa viagem com clareza.
James Webb produziu a imagem infravermelha mais profunda e nítida do universo distante até hoje. Os buracos negros engolindo estrelas, milhares de galáxias aparecendo na visão de um telescópio pela primeira vez. Apareceu a Nebulosa de Carina, uma espécie de berçário estelar, localizado a 7.500 anos-luz da Terra. E o Quinteto de Stephen, a 290 milhões de anos-luz de distância, um agrupamento visual de cinco galáxias, que interagem umas com as outras há milhões de anos. O telescópio vai ser cada vez mais capaz de trazer luz aos mistérios do cosmos, ao começo do universo. Como não se emocionar igual aos cientistas? Alguns quase choraram diante das novas possibilidades e de poder observar “a natureza liberando seus segredos”.
Nesta mesma semana, outra descoberta impactou um também mundo bilionário, o das artes. Um autorretrato do pintor holandês Vincent Van Gogh (1853-1890) foi encontrado escondido no verso de outra pintura dele. Tudo aconteceu quando especialistas das Galerias Nacionais da Escócia faziam uma radiografia da tela, antes de uma exposição. O raio-X identificou o autorretrato, coberto por camadas de cola e papelão, no verso de um trabalho anterior chamado Retrato de Mulher (Cabeça de Camponesa). O artista pobre, só reconhecido depois de morrer, costumava reutilizar telas para economizar dinheiro, virando-as e depois trabalhando do outro lado.
Van Gogh teve uma carreira breve, o talento só cintilou na vida adulta, mas em menos de uma década pintou 879 telas, entre elas 37 autorretratos. Na falta de dinheiro para contratar modelos, o holandês recorria a um espelho para pintar a si mesmo, ou retratava alguns conhecidos que não cobravam cachê para posar. A imagem de raio-X revela um homem barbudo com um chapéu de abas e um lenço amarrado no pescoço. Com o olhar intenso e o lado direito do rosto na sombra, a orelha esquerda do artista é claramente visível, indicando ser um retrato anterior a automutilação. A exemplo dos cientistas da NASA, a equipe técnica das galerias nacionais escocesas também está tocada com este fato raro, quando aparece uma obra desconhecida de um dos artistas mais importantes, populares e impactantes do mundo. Um gênio que sofria com um misto de transtornos mentais e era bebedor contumaz de absinto. Certo dia, Van Gogh saiu cedo de casa e atirou contra si mesmo. Morreu quase 30 horas depois, no dia 29 de julho de 1890.
James Webb e Van Gogh dizem muito de nós e para nós. Provam que o ser humano é capaz de feitos inacreditáveis e obras eternas, isoladamente, como legou o holandês, ou quando trabalha em grupo, como os cientistas. James e Gogh fazem lembrar a inesgotável capacidade humana de resolver problemas e de emocionar. Que conseguimos transcender, transformar os dramas, sejam comezinhos ou universais. Se é possível bater à porta do buraco negro do cosmos, porque não bater à porta de gente que está perto? É preciso acreditar que não seremos engolidos pelo buraco da insensatez e da selvageria, que assim como o telescópio chegou tão perto de estrelas inimagináveis, podemos alcançar nossos próprios demônios e torná-los algo melhor. Se o homem tem inteligência para decifrar o nascimento do universo e para desnudar uma pintura escondida depois de um século, porque não saberá apaziguar hostilidades, acabar com a fome, diminuir desigualdades? Se olharmos sob a perspectiva do James Webb, somos diminutos para tanta presunção, soberba e vaidades que orbitam no cotidiano de cada um. Simplesmente não combina.
O telescópio nos aproximou do céu que Van Gogh observava de longe e transformava em arte. A Noite Estrelada (1889), uma das suas obras mais valiosas, ele pintou quando estava no sanatório de Saint-Rémy-de-Provence. É a vista do quarto em que dormia, retratada em uma tela de 73,7 × 92,1. As espirais são a primeira coisa que chama a atenção no quadro, pinceladas rápidas em sentido horário dando a sensação de profundidade e movimento ao céu. Profundidade e movimento que o James Webb está nos permitindo ver de perto. Num exercício de ficção poética, o holandês teria alcance a essas imagens contemporâneas. Antes de começar na arte, ele bem que tentou ser pastor, mas não deu certo. Costumava dizer que, quando sentia falta de Deus, tentava procurá-lo nas estrelas. Que viagem Van Gogh não faria na carona do James Webb! Queria só ser um grão de areia e embarcar também.
Daniela Sallet é jornalista e documentarista