Já desde antes de nascermos nós estamos imersos em um jogo de espelhos.
É aquela cena clássica: assim que os pais fazem o primeiro ultrassom, os conhecidos e familiares começam a montar a imagem do bebê. “Tem o nariz do pai!”. “A orelha é igual à da vovó!”. Todo mundo quer ver a si mesmo refletido naquele pequeno ser que ainda está na barriga. Da mesma forma, essas frases também vão servindo de espelho para a própria criança, vai sendo construída a narrativa mínima que pode ser resumida na frase: “Eu sou assim”.
Curioso é que este “assim” está lá do lado de fora. É na imagem oferecida por todos estes espelhos que nós vamos, desde muito pequenos, nos reconhecendo. É a este mosaico de imagens formadas de nós que nós chamamos de “eu”.
E isso vale, claro, também para elementos subjetivos: “Hm, do jeito que chuta de noite, certo que vai ser baladeiro”. Ou: “Tá demorando pra nascer, vai ser preguiçosa que nem o tio”.
Ainda que este processo seja mais evidente na época da gestação e do nascimento, nós estamos dentro desta casa de espelhos subjetiva a vida toda.
Quando pensamos em comprar uma roupa nova, por exemplo, muitas vezes nós perguntamos pra alguém se tal blusa ou tal calça “tem a nossa cara”. Precisamos que alguém nos diga: “Sim, esse casaco é tu!”. Temos um tremendo receio de não nos vermos em nossa imagem refletida.
Outro exemplo, aí do outro lado do espelho, é quando vamos comprar um presente pra alguém. “Qual objeto é a cara do fulano?”. “Qual livro faz estilo da minha amiga?”. Um presente, nós supomos, precisa reforçar o que alguém já é.
Minha vó materna, aliás, era uma bela – ainda que mal-educada – ilustração disso. Quando ganhava um presente de que não gostava, não hesitava em devolvê-lo, ali no ato mesmo. Colocava o pacote de volta na mão do desiludido presenteador, e ainda por cima agradecia: “Obrigada, não quero”. Para vergonha de toda a família, ela fazia isso na maior parte das vezes. Tanto que, mais para o final da vida, nós dávamos para ela apenas o que sabíamos que ela realmente gostava: caixas e baús de todos os tipos.
Na infância, os nossos espelhos costumam ser os familiares mais próximos. “Filho meu não vai andar por aí com essas pessoas”. “A minha filha precisa ser bem-comportada”. De fundo, é como se fôssemos alvo de variações da mesma frase: “Se não for igual a nós, não será nosso filho ou nossa filha”. É um espelho muito rígido e exigente.
Com sorte, chega a vida escolar e os espelhos que nos refletem se multiplicam. Os professores nos devolvem imagens que não encontraríamos no seio familiar. “O fulano gosta muito de matemática”. “A fulana se comporta mal no recreio”.
Nesta fase, é preciso que a família possa suportar não ser a única casa de espelhos por onde seus filhos circulam, ainda que a contragosto. Caso contrário, alguma coisa da imagem pode se perder pelo caminho ou, pior ainda, teremos jovens com uma dificuldade imensa de sair para o mundo, de experimentar outros reflexos de si mesmos por aí.
Costuma ser na adolescência que passamos a ter que lidar com alguns espelhos que nos devolvem imagens nem tão gentis. Reflexos cruéis com os quais nos identificamos e que, muitas vezes, carregamos para o resto da nossa vida, ainda que talvez não fiquem tão em primeiro plano.
É um período que pode ser muito difícil, porque não é incomum que, além de lidar com estes espelhos distorcidos, muitos jovens ainda tenham que trabalhar com o fato de que, para seguir adiante, é preciso quebrar o espelho familiar em que se viam.
Aos poucos, entretanto, vamos nos dando conta de que nem todo espelho nos mostra quem somos, mas também diz algo daquele que segura a moldura à nossa frente. Passamos a tomar para nós a tarefa de construção de uma imagem de nós mesmos, ainda que a referência exterior seja impossível de abrir mão. Nós estamos sempre sustentados neste desencontro entre o que é visto em nós pelos outros e o que nós gostaríamos que fosse visto.
Passamos a nos perceber que nós também somos espelhos para outras pessoas, e que isso tem consequências. Também devolvemos para quem nos circunda uma imagem, e muitas vezes não percebemos como o nosso olhar molda os outros à nossa volta.
Neste sentido, as redes sociais têm uma função muito importante: através delas nós fazemos uma certa curadoria de nossa imagem, nos apropriamos da constituição do reflexo que gostaríamos que fosse visto. Da mesma forma, nos tornamos testemunhas do modo como os outros moldam a sua imagem. Importante pensar, entretanto, que mesmo que – na maior parte das vezes – tenhamos feito o luto daquele reflexo que éramos para os nossos pais, agora tomamos como referência outras imagens idealizadas com as quais nos medimos, nos preocupamos com como somos vistos pela cultura.
Nesta passagem da vida familiar para a vida social, encontramos alguns espelhos privilegiados, pessoas que supomos nos entregar uma imagem mais verossímil. A estas superfícies nós chamamos amigos. Quando produzimos mudanças significativas em nossas vidas, não raro também estes espelhos podem se sentir ultrajados, como se devêssemos sempre corresponder ao reflexo que nos oferecem. Os bons amigos conseguem suportar que por vezes nós pareçamos sem contorno, que nós embacemos um pouco a imagem. Infelizmente, há os que não suportam isso, tomando como um injúria a nossa desobediência imagética.
Estamos lidando com a complexidade inescapável de estarmos dentro de um jogo de espelhos em que nunca temos certeza de onde, por quem, e como somos olhados, ainda que sempre caiamos na hipótese de que a nossa identidade está dentro de nós mesmos. Não está, muito pelo contrário. Se somos algo, é tão somente este ponto difuso e sem lugar desde onde nos vemos refletidos em um mundo de imagens desconexas e incompletas, mas que ainda assim é o único lugar em que nos sentimos em casa.