Quando perguntado por um jornalista qual a origem da dívida externa dos países latino-americanos, J.L. Borges não vacilou: “É o catolicismo”. Diante da estupefação do entrevistador, explicou que somos produtos culturais da contrarreforma da religião católica iberista e, portanto, de seus sistemas de valores, de sua ética, os quais são baseados num princípio que têm como modelo típico a prática da confissão e perdão dos pecados.
É eticamente incorreto o fato de que, infringidos os mandamentos e as leis divinas durante a semana, a confissão e a missa dos domingos possa nos absolver de tudo com uma leve pena e, ipso fato, nos autorizar a repetir as infrações da semana anterior por mais graves que elas tenham sido. E, mais grave ainda, mesmo que tenhamos transgredido os sagrados preceitos religiosos em toda sua extensão e intensidade durante toda nossa vida, no último minuto, in extremis, tudo poderá será pago na contabilidade divina se nos alcançar o perdão de um clérigo pelo ritual da extrema-unção.
Essas práticas não existem entre os seguidores das religiões protestantes, motivadas pela Reforma Luterana e que predominam entre os povos anglo-saxões dos países capitalistas, nossos eternos credores. Segundo a interpretação de Borges, os dirigentes dos países católicos da América Latina estão constantemente tomando dinheiro dos banqueiros das nações protestantes com a secreta esperança de um dia serem perdoados como são os pecadores da religião católica.
Quando o jornalista argumentou que esse era apenas um aspecto da política econômica dos governantes da América Latina, Borges, argutamente, lembrou-lhe que, à época, na Europa, a maior dívida externa era a da Polônia, casualmente um dos mais católico entre os países do continente.
O que Borges intuía sobre as dívidas dos países latinos, pois era um ficcionista e suas relações com a política eram cerimoniosas e distantes e até equivocadas – alguns historiadores confirmam, mas baseados principalmente em dados sociológicos, políticos, econômicos e mesmo psicológicos. Em resumo, as culturas dos colonizadores eram notavelmente diferentes. Mesmo que motivos estritamente econômicos possam determinar algumas importantes diferenças, não são eles suficientes para todas explicar e justificar.
É impossível deixar de considerar a importância em nossa formação social e subjetiva de traços caraterísticos da cultura ibérica contra-reformista, como o culto da personalidade, o patriarcalismo, o sonho do enriquecimento lotérico sem custos pessoais sociais e éticos, o nepotismo, a conjunção entre o exercício delituoso e violento do poder e a impunidade costumeira, a ausência de culpa pelos diversos tipos de genocídio – desde o massacre de prisioneiros, de camponeses pobres, até a crueldade extensa e intensa da criminosa mortalidade infantil e materna –, fatores todos associados à certeza de que tudo será perdoado pelo olvido, pelo compadrio, por “leis que não pegam”. Enfim, delineou-se em nossa cultura um nefasto equador social baseado num estamento econômico acima do qual não existe pecado.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras (cadeira nº 9).
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