Meu primeiro choque com a realidade política nacional foi pelos 12 anos, lá se iam os anos 1970 e a ditadura comia solta. Fui visitar meu pai no trabalho e, ao lado do escritório, havia uma área de oficinas cheia de jornais velhos (do dia anterior já era velho, claro) no chão. Meus olhos estão passeando sem motivo e de repente, numa folha engraxada e pisoteada, vejo impressas as fotos de dois jovens, lado a lado, na capa. “Terroristas presos em Porto Alegre”. Era um casal e a mulher, reconheci na hora, era a filha da minha professora de violão. “Minha filha não é maconheira”, defendia a mãe, minha professora, no texto do jornal.
Em 1980, fiz a minha estreia na faculdade, no curso de Ciências Sociais, na PUCRS. E, seguro de mim, coloquei uma camiseta nova para o primeiro dia. Me olhei no espelho e lá estava estampada a já clássica, messiânica, figura de Che Guevara. Minha mãe, também professora – mas não de violão – me pediu para sentar e tentou me dissuadir de sair com aquela roupa. “Meu filho, não está na hora ainda, é perigoso”. O que menos uma mãe espera é ver a foto do seu filho preso, na capa de um jornal sujo no chão de uma oficina, acusado de ser terrorista e, pior, maconheiro, ainda que a erva fosse uma realidade inevitável para jovens no final dos 70, bem como também era mandatório admirar o psicodélico escritor mexicano Carlos Castaneda. Ler, ninguém lia.
Naquele dia, saímos, Che e eu. E o maior risco que corri naqueles tempos foi fugir dos cavalos e dos cassetetes no centro de Porto Alegre, durante o protesto contra a presença do ditador argentino Rafael Videla no Brasil. Em tempo: Videla morreu na prisão, aos 87 anos, condenado por seus crimes na chamada Guerra Suja. Ao contrário do Brasil, onde tudo foi para baixo do tapete, os Hermanos lavaram a roupa… suja. (#SemAnistia)
Anos mais tarde, troquei as ciências sociais pelo jornalismo. Ciência sociais, à época, não oferecia muitas opções profissionais além da carreira acadêmica. Entendi que o jornalismo acenava com mais opções e uma vida mais excitante, e não estava errado. No entanto, o que não calculei bem é que jornalistas, em geral, são condenados a viver sempre apertados financeiramente – e apertados em casa menores, também, por consequência. Olha lá! Não me vem com Willian Bonner, ele é exceção, como o Neymar, CR7 etc. são no futebol. Mais da metade dos jogadores brasileiros ganhou menos de um salário-mínimo em 2021, apurou o G1. Mas jornalistas, além da péssima remuneração, tem uma assombração muito pior: são assassinados.
Levantamento divulgado, em 29 de dezembro último, pelo International Press Institute (IPI), organização que atua desde 1950 na defesa da liberdade de imprensa, apontou que em 2022 nada menos que 66 jornalistas – 8 mulheres e 58 homens – foram mortos, o que revela o aumento assustador da insegurança se compararmos aos 45 assassinados de 2021. As notícias são péssimas para a América Latina e o Caribe, em especial, que lideram o ranking.
O país mais mortal de 2022 foi o México, com 14 assassinatos documentados. O Haiti vem em segundo, com 8 mortes. A Ucrânia também registrou 8 óbitos, a maioria de profissionais em cobertura na linha frente da guerra. Na sequência, temos Filipinas (5), Colômbia (4), Equador (3) e Honduras (3). O Brasil registrou 2 mortes e figura no desonroso ranking ao lado de Myamar, Índia, Síria e Yemen. Você até pode achar que 2 mortes é pouco. Mas pouco mesmo é zero. Ou você já teve notícias de algum arquiteto morto por exercer sua profissão? Um médico? Nutricionista?
Para o IPI, “é o fracasso dos Estados em garantir justiça para os ataques a jornalistas que fornecem terreno fértil para a violência contra a Imprensa”.
O México é um exemplo. O presidente Andrés Manuel Lopéz Obrador mantém um discurso dúbio. De um lado, diz que vai acabar com a corrupção e a impunidade e, de outro, ataca agressiva e verbalmente a mesma mídia que combate a impunidade e a corrupção. “O terrível massacre de jornalistas no México mostra que os criminosos estão no controle, pois podem agir impunemente”, denuncia o diretor executivo do IPI, Frane Maroević. No Haiti prospera a selvageria. Dois jornalistas foram queimados vivos por gangues em Porto Príncipe. Na Ucrânia, além de mortes no front de batalha, houve assassinatos ‘comuns’. Por fim, das 66 mortes de 2022, 50 estão diretamente relacionadas à atividade profissional e 16 têm causas não bem definidas, o que não excluiu a motivação profissional.
É um cenário catastrófico, mais ainda quando se vê o recrudescimento assustador de valores que achámos que haviam sido enterrados com o século passado.
Por estas e outras é que até hoje não sei se fiz bem em trocar as ciências sociais pelo jornalismo. E talvez nunca saiba. Mas seja lá em que lugar esteja, estar ao lado daqueles que defendem a liberdade, a igualdade, a humanidade, a paz e a justiça me faz crer que estou no lugar onde deveria estar.