Ecce homo – teria dito Pôncio Pilatos ao apresentar Jesus aos judeus, notadamente às suas instâncias do poder que lhes restava. Eis o homem, em tradução aproximada.
Numa contemporaneidade em que marqueteiros, turbinados por capturas de tendências de opinião a partir das redes sociais, fabricam perfis, orientam condutas, escolhem pautas para aquelas e aqueles que se lançam na chamada “vida pública”, Mujica (1935-2025) aparece como mais “antigo” que o Fusca azul emblemático em que se deslocava. Ressaltando-se que o referido Fusca azul não era, nunca foi, estratégia de marketing – mesmo que tenha tido alguma eficácia em fazer pensar.
Mujica não se prestou a santificações, apesar das qualidades humanas que deixo à leitora e ao leitor constatar. Alguns torcem o nariz para seu passado de militante Tupamaro, na década de sessenta do século passado. Nesse tempo, dizem, ele teria participado de ações à mão armada, como sequestros e assassinatos políticos, que lhe renderam período de prisão nas masmorras da então ditadura uruguaia, tempo durante o qual ele nunca foi julgado. Por falar em delitos, penas e julgamentos, em texto anterior me referi a mal-estar ocasional por ser brasileiro, ao focar em duas cenas brasileiras – a primeira com um senhor que prestava serviços aqui em casa, recolhido à masmorra de Alcaçuz, nos arredores de Natal (RN), por delito nebuloso de há trinta anos atrás, e a segunda cena referente a conhecido político brasileiro, condenado a prisão em sua cidade de origem, Maceió (AL), prisão essa que se tornou domiciliar, em uma das propriedades de luxo do apenado. A morte de Pepe Mujica me veio como bálsamo, como oportunidade (não muito frequente, nesses dias), de voltar a sentir orgulho por ser gente.
Muito frequentemente me pergunto acerca da motivação real de uns e outras para entrar na vida pública, nas lides políticas, na esfera das responsabilidades e do poder. É corrente em nossas sociedades latino-americanas o baixo prestígio dos políticos; um tio meu costumava corporificar essa voz sócio-cultural ao sentenciar que político (brasileiro) ou bem é ladrão, ou está em vias de sê-lo. Noutra esfera de reflexão, o velho (mas ainda pertinente) Freud traz algumas luzes acerca do desejo de poder, mas aqui busco sempre os parênteses do cuidado em não psicologizar indevidamente o debate. Tais posturas trazem em seu bojo o risco do remédio pior que a moléstia – um mundo sem políticos é um mundo da gestão de todos e tudo por uns poucos, via força bruta. Mas isso não elude o fato de quão desesperador é avaliar as ações dos políticos contemporâneos em termos da própria mesquinhez. Conta a história (ou lenda) que, na Antiguidade Clássica grega, o filósofo Diógenes de Sínope andava pelas ruas de Atenas, em pleno dia, com uma lanterna acesa. Quando perguntado acerca da razão de tal ato inusitado, respondia estar à procura de um homem honesto. Tão difícil de encontrar que exigia fonte adicional de iluminação para a busca.
Eis que surge um homem, em sua inteireza e, sobretudo, honestidade intelectual, moral. Mujica, até onde sei, não seria elegível para a canonização, para virar São Pepe Mujica, e se tornar o segundo santo canonizado uruguaio, ao lado de Maria Francisca de Jesus (Ana Maria Rubatto), canonizada pelo papa Francisco em 2022; ele, Mujica, não transformou água em vinho, apesar de ter conseguido certo sucesso em ajudar o povo uruguaio a levantar, e andar, com redução do perfil de pobreza naquele país ao final de sua gestão presidencial (de 32,6% da população, em 2006, para 8,1%, em 2018); com encaminhamento de uma das legislações latino-americanas e mundiais mais avançadas em relação ao direito da mulher de interromper a gravidez; com a instauração igualmente avançada de política de segurança e saúde pública referente ao cultivo, processamento e comercialização da Cannabis (maconha). Pensando bem, talvez Leão XIV devesse examinar melhor o rol de realizações milagrosas de Mujica…
Ao final de sua vida, Mujica lidou com o envelhecimento, adoecimento e perspectiva da morte com altivez e dignidade. Sem a pretensão de atrair os olhares e “influenciar” nesse momento da existência. Falando com simplicidade e, mais uma vez, desassombro acerca do imenso cansaço, do direito a descansar, do pedido no sentido de que o poupassem da enésima demanda da enésima entrevista. Tudo, em Mujica, traz aquela sensação de um personagem que não pertence a esse tempo atual: do Fusca à indumentária, da forma de lidar com oponentes e com a própria contemporaneidade em seus elementos mais tóxicos: vide o livro “Sobrevivendo ao século XXI: Chomsky e Mujica”, de Saúl Alvidres e Maria Cecilia Brandi; do rol de propriedades e conta bancária antes e depois do período no poder e gestão pública.
Uma honraria de estado brasileira, a Ordem do Cruzeiro do Sul, entregue a Mujica pelo presidente Lula, em 2024, trouxe sobretudo lustro para tal medalha. Lá no firmamento dos homens justos, buscados pela lanterna de Diógenes de Sínope, Mujica passa a régua em sua trajetória com a frase que lhe é atribuída: “Dediquei-me a mudar o mundo, e não mudei nada”. Mas se “(…) o bater de asas de uma borboleta no Brasil (e no Uruguai) pode causar um furacão no Texas”, a sutileza de Mujica pode ter desencadeado processos ainda por avaliar. Eis o homem, eis seu legado, nosso alento.
DROPS DA SEMANA:
Verdade
No mais das vezes, uma meia verdade. Cuja superação não a torna mentira, mas uma verdade menor. Como diria Newton a Einstein.
Todos os textos de Jorge Falcão estão AQUI.
Foto da Capa: Jor Cruz / Agência Brasil