O rapaz corria pela grande avenida. Corria rápido, como se estivesse atrasado ou angustiado indo ao encontro de algo. Chamou-me a atenção o fato de que, enquanto corria, tinha a camiseta – que parecia de algum time de futebol ou algo do gênero – levantada e a barra da parte da frente sendo mordida por ele, segurando então a parte de baixo da camiseta com a boca, deixando toda sua barriga e parte inferior do tronco desnuda. A cena me chamou a atenção. Já era final da tarde, o calor nem estava tão intenso naquele dia. Quando me dei conta, lembrei que o rapaz era negro e meu pensamento foi para um lugar desconfortável e indigesto, porém infelizmente não absurdo.
Pensei que ele corria com a camiseta erguida pois, por ser negro, deve ter sido orientado a não correr, pois entenderiam que estaria fugindo de algum delito, e precisaria também mostrar que não estaria carregando nenhuma arma ou faca em sua cintura. Por isso a camiseta levantada.
Fiquei extremamente envergonhada e triste por pensar nisso. Sinto vergonha até de escrever isso agora, mesmo sabendo que não é um pensamento absurdo, embora devesse ser. Ele precisa provar, confirmar sua inocência mesmo sem delito algum. Ele precisa correr, sabendo que talvez até mesmo o que poderia estar sendo um comportamento de autoproteção por algo corria o risco de ser interpretado justamente ao contrário, como um ataque. Nem vou entrar no mérito do tamanho do racismo em nossa cultura e sociedade e do quanto isso é desprezível e necessário de ser abordado, pensado, problematizado, assumido.
Mas aí tem Juliana. Juliana, uma mulher como eu, como você. Juliana só queria amar, ela me conta. Mesmo sem ter bem certeza da complexidade desse sentimento, dessa ação ou dessa força. Já teve suas várias experiências (des)amorosas ao longo da vida e dessa vez vinha dando oportunidade para mais uma história de amor há alguns meses. Acontece que mulheres podem ser vistas como perigosas. Ela começou a correr numa grande avenida, não porque cometeu algum delito, não porque machucou alguém. Ela talvez estivesse correndo de entusiasmo, excitação, desejo de pegar impulso e quem sabe até voar. Ela não levantou a blusa o suficiente como o rapaz que mencionei no início desse texto. Talvez aquela corrida tenha parecido ameaçadora demais aos olhos alheios. E se em sua cintura houvesse alguma arma branca? Mulheres, amordaçadas há tantas gerações, não desejam enclausurar ninguém, ela pranteava em meu ombro, enquanto tomávamos um gin tónica em seu apartamento de mulher solteira bem resolvida mas com aqueles espaços para que alguém interessante pudesse chegar, com quadros ainda não pendurados até que alguém ajude a pensar onde ficariam melhor expostos.
Eu jamais ousaria equiparar o sofrimento do racismo com o sofrimento do machismo. São dores diferentes. Mas essas duas cenas se cruzaram na minha frente quando pensava no meu texto dessa semana. A primeira delas completamente verídica, a segunda livremente inspirada em relatos reais combinados. Mulheres que desejam amar podem ser perigosas. A capacidade de amar é uma munição pesada, nem todo mundo consegue carregar, usar da forma menos violenta ou simplesmente saber receber. Julianas estão aí diariamente deixando de ser enxergadas porque pedem “demais”, ou porque sabem que não precisam mais pedir e isso causa incômodo. Julianas são abandonadas, esquecidas, mas também abandonam, falham, ou simplesmente não querem mais. As relações amorosas e sociais, a duras penas, caminham para um lugar de um pouco mais de equidade, mas socialmente o lugar da mulher é ainda um lugar social que, quando foge minimamente da passividade e ternura, é visto como ameaçador.
Viver sempre com a barra da camisa na boca para provar inocência é absurdo. Nem pela cor, nem pelo gênero, se deveria precisar de prova de boas intenções. O amor e o respeito são avenidas largas, passa muita gente, poucos sabem trafegar. Amar não é fácil, sobreviver a perdas e fracassos muito menos. Existir numa engrenagem de preconceitos exige coragem. Você não é perigoso, rapaz. Você também não, Juliana.
Quem foge de si é que atira para matar. Mas morre sozinho.
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Foto da Capa: Freepik