Quem disser que sabe explicar as manifestações de junho de 2013 estará mentindo. Dez anos depois da mobilização, não é possível mapear a coordenação, o objetivo ou estratégia, a intenção por trás do protesto mais heterogêneo e descentralizado noticiado pelo jornalismo brasileiro. Sabemos ter sido uma mobilização conectada pela internet. E só mais tarde viemos a conhecer os seus desdobramentos políticos.
Eu trabalhava na redação de um jornal impresso na época, editava o site e os materiais multimídia. Os repórteres foram aos montes para a rua buscar informações, entrevistar fontes, entender o que acontecia para poder relatar aos leitores. A verdade é que falhamos de forma atroz na busca pelo porquê. Foi trágico, angustiante, desnorteante.
O ponto de partida para narrar um acontecimento com precisão é encontrar fontes de confiança. Eis que ninguém se dizia líder do movimento, menos ainda sabia indicar quem falava pelo grupo. Em um dos vídeos, entrevistamos um representante do movimento Black bloc: mascarado, vestido de preto e sem identidade. O movimento anarquista era contra o sistema e, portanto, não permitia nenhum tipo de hierarquia: a fonte somente participava na condição anônima.
Entrevistá-lo foi uma forma de narrar a realidade daquele acontecimento. Em condições normais de temperatura e pressão, a regra é depoimentos on e não off. Os offs são exceções na ética jornalística, quando a informação fornecida pode colocar em risco a vida de uma pessoa ou quando o interesse público se impuser, como acontece em pautas investigativas. No caso da jornada de junho de 2013, o off foi ultrajante: era a anarquia como afronta à regra jornalística.
Optamos por flexibilizar nossas regras na tentativa de entender o que acontecia para poder narrar aos leitores, internautas, ouvintes. Quem quisesse ouvir a voz do jornalismo. Porém, apesar dos picos de audiência no site naquele dia, a sensação na redação, diante da manifestação que tomou as ruas, era de que aquelas pessoas estavam ali para provocar o caos, o desconforto, a desvalorização do outro. “Eram contra tudo isso que está aí”, inclusive contra o jornalismo em placas explícitas com palavras como “não me representa”.
A situação agravou quando os manifestantes da jornada de junho de 2013, em Porto Alegre, optaram por sair em caminhada do bairro Bom Fim, perto da Redenção, em direção ao Menino Deus, na Ipiranga esquina com a Érico Veríssimo. O endereço de destino era justamente onde eu estava: a redação do jornal.
No caminho, havia relatos de hostilidade com repórteres de diferentes veículos e algumas manifestações de violência contra o patrimônio público ou estabelecimentos comerciais. Não era possível discernir o que estava por acontecer e, justamente por isto, o medo tomou conta do ambiente de trabalho. A polícia foi acionada. A frente do jornal virou palco de confronto. Trincheiras dos dois lados e nós no centro: ora alvo, ora testemunhas da História.
Foi uma noite tensa e triste. Todos os funcionários do jornal tiveram de ficar detidos, sitiados no prédio, sem o direito de ir e vir garantido. A ameaça de invasão do prédio por manifestantes claramente alterados acrescentava elementos de suspense e, ao mesmo tempo, preocupava e entristecia. A manifestação, naquele momento, tinha um alvo claro: o jornalismo nosso de cada dia e, por consequência, nós, os jornalistas.
Incompreensão, incredulidade, insuficiência. O prefixo “in” poderia aqui ser aplicado em muitas das palavras para significar privação, negação, movimento para dentro. A verdade é: não houve aviso prévio, fomos tomados pela insurgência. O consolo era a solidariedade. O governo do Estado não viu o movimento se formar. O Legislativo não enxergou a mobilização. Os partidos políticos, com exceção do Psol, também não. O Psol foi o partido que reivindicou, por pouco tempo, a organização das manifestações, já que havia uma coordenação de protestos pelo preço da passagem de ônibus. “Não é pelos 20 centavos” virou o slogan da jornada.
Não foi mesmo pelos 20 centavos, e eu considero uma pena. As mobilizações quando organizadas e estruturadas em reivindicações sociais claras, como o preço da passagem de ônibus, são ferramentas da participação popular na democracia. A lista de insatisfação quando desacomoda, gera desconforto, leva à discussão institucionalizada, ou seja, sai da manifestação de rua e entra na tramitação legal nos poderes instituídos capazes de atender às demandas sociais. A estratégia é conhecida dos brasileiros: o Movimento Sem Terra (MST) com as invasões e ocupações tem a intenção de provocar o debate sobre a reforma agrária e a desigualdade social. O MST rompe com a normas e flerta com a ilegalidade, mas visa a transformação política e democrática. O ponto de inflexão é este.
Ao criar redes de indignação contra tudo o que está aí, os manifestantes de junho de 2013 deixaram a esperança de lado. Só é possível esperançar por algo almejado, vislumbrado, desejado com concretude. A reivindicação estruturada constrói, a manifestação vazia destrói. Até hoje os escombros da jornada estão nas ruas, não houve a reconstrução porque tudo virou pó e ali ficou na opacidade, na incompreensão, no inexplicável. Há quem sustente que foi um movimento orquestrado pela extrema direita, MBL e outros, para desestabilizar o governo. Pode ter tido uma contribuição desse ativismo digital, mas houve muito mais uma apropriação à posteriori do que à priori. Por certo, na sequência houve manifestações contra o PT e a então presidente Dilma. Mas na jornada de junho não: ali todas as cartas estavam embaralhadas e até hoje este jogo não teve vencedor.
Há embrenhado na jornada de junho de 2013 um sintoma do tempo digital, da internet sem lei, da cultura do submundo, do anonimato no qual tudo pode e não há punição. O que os manifestantes realmente buscavam talvez muitos deles nem saibam ainda hoje – era contra tudo, era contra eles mesmos, tamanha a insatisfação. Mas o que eu sei, dez anos depois, é o que eu quero para os próximos dez anos: uma internet responsável, na qual possamos identificar iniciativas na velha e boa tática investigativa do “follow the money and find the answer”. O primeiro passo é a regulação das plataformas.
Foto da Capa: Agência Brasil