Deixa de lado o celular e liga a TV. Já há anúncios para mais uma edição do Big Brother. Assiste sem prestar atenção. Volta a deslizar a tela do celular e repassa postagens do Instagram. Tenta não escorregar da poltrona, procura ajustar a postura. Uma dor lombar soma-se a dormências na mão e no braço que parecem ter feito juras de uma ligação eterna – ou até que a morte as separe – com o aparelho celular. Num gesto de rebeldia, levanta e dirige-se à estante para buscar um livro qualquer.
Folheia as páginas, como se estivesse deslizando outra tela. O olhar detém-se num parágrafo: “Nosso mundo tornou-se terrivelmente superficial e trivial hoje em dia. Estamos todos tão ansiosos para ficar ricos, para nos tornarmos famosos ou para adquirir algum outro tipo de sucesso externo. Estamos todos com pressa e não temos tempo para nada que não seja imediatamente prático. Perdemos todo o sentido das coisas mais elevadas da vida e nos contentamos em viver em um mundo de aparências. Tornamo-nos como crianças, que se divertem facilmente com brinquedos e bugigangas. Não temos mais a capacidade para apreciar o significado mais profundo da vida.”
Levanta, olha através da vidraça. Apesar da cerração, há agilidade no sabiá, que pousa na tigela para roubar a ração do cachorro. Bruce não se importa, seus anos de cão só acentuaram sua bonomia.
A cena faz lembrar que ele ficara de refazer o comedouro para as aves. Elas apareciam sempre que lhes oferecia uma metade de laranja, uma banana madura. Além dos sabiás, sanhaços e cambacicas dividiam, sem cerimônia, as oferendas.
O pensamento voou e veio à lembrança a censura de um vizinho: – Bobagem, perda de tempo. Tanta coisa mais séria acontecendo e ficas aí preocupado em dar de comer a passarinhos? O mesmo sujeito também o criticara por plantar, no canteiro da calçada, um pé de justícia vermelha, apenas porque o arbusto, quando florido, atrai beija-flores, borboletas e abelhas – um vetor de polinização.
No rádio, em meio a ironias, a apresentadora falastrona desaprova os jovens ativistas, que foram detidos na tentativa de prestar ajuda comunitária em Gaza. – Essa Greta e sua trupe só querem chamar atenção – enfatiza ela – sabiam que seriam barrados.
Mas não seria esse exatamente o propósito, de despertar a humanidade para o que acontece, e se avoluma, em violentas ações e reações e, principalmente, inações?
“Quando os nazistas levaram os comunistas, eu me calei, afinal de contas, eu não era comunista. Quando eles prenderam os social-democratas, eu fiquei calado; eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu fiquei em silêncio; eu não era sindicalista. Quando eles vieram por mim, não havia mais ninguém para protestar” – essa citação é de um sermão escrito por Martin Niemöller (1892-1986), pastor luterano alemão que, com o desenrolar dos acontecimentos, passou a se opor ao regime nazista. Também ele foi levado a um campo de concentração. Libertado no final da guerra, tornou-se um importante pacifista, defensor dos direitos humanos. O texto foi adquirindo versões, sendo atribuído a autores mais conhecidos – Brecht, Maiakowski. O mesmo se deu em relação ao brasileiro Eduardo Alves da Costa, na sua paráfrase ao texto de Niemöller, o poema “No caminho, com Maiakowski”.
No livro aberto sobre a mesa da sala, aquele trecho pede nova leitura, agora em voz alta. “Nosso mundo tornou-se terrivelmente superficial e trivial hoje em dia… Não temos mais capacidade para apreciar o significado mais profundo da vida”. – Nem para nos sensibilizarmos com o que acontece – diz de si para si o circunstancial leitor. O autor parece não ter esquecido uma vírgula, não há nada a reparar, recorte fiel desse tempo que vivemos.
O texto é de O adolescente, publicado em 1875, por Fiódor Dostoievski (1821-1881). O livro é considerado um dos cinco grandes romances da maturidade do extraordinário escritor russo. Ao lado de Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamazov. Embora seja o menos conhecido dentre eles, devido à incompreensão da crítica à época. Decorrido um século e meio, o trecho em questão poderia ter sido escrito hoje.
A neblina lá fora, ainda mais espessa, parece invadir a alma. Em voo rasante, alheio aos conflitos do planeta e à fome das gentes, o sabiá volta para buscar mais porções de ração. Bruce apenas o olha. Há alimento de sobra para partilhar.
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Foto da Capa: Ilustração do Autor.