Houve um tempo em que existiam revistas de papel. Eram bonitas, coloridas, bem diagramadas e com fotos abertas. Algumas se davam a luxos maiores: papel de boa qualidade, assuntos variados e textos – ótimos textos – escritos pelos melhores repórteres, redatores e colunistas. Com as revistas, surgiram os revisteiros, especialistas nesse artesanato tão genérico quanto específico. Eram pessoas quase sempre com bom gosto estético, avançado conhecimento geral dos assuntos, facilidade para compreender as diversas fases de produção – da idealização da pauta aos meandros da gráfica – e, principalmente, com um senso de tempo especial. Um profissional que tivesse o timing jornalístico de maneira equilibrada, sem ter tanto a pressa e a pressão para que tudo tivesse de ser publicado em menos de 24 horas. As revistas exigiam um tempo de maturação, algo exato e na medida – sem atropelamentos, mas também sem perder a instantaneidade do fato.
Justino Martins foi um mestre desse ofício. Gaúcho de Cruz Alta, nascido em 13 de abril de 1917, filho ilegítimo de um estancieiro uruguaio, ele passou por diversas atividades na adolescência (balconista, sapateiro, operário em construção de ferrovias…) até receber a oportunidade de se tornar revisor da Revista do Globo a convite de Erico Verissimo, seu conterrâneo. A ascensão foi instantânea. De revisor passou a redator e, com pouco mais de 20 anos, em 1939, assumiu a direção da revista em Porto Alegre, em substituição a Luiz Estrela. Quinze anos depois, em entrevista à própria Revista do Globo, Justino reconheceria a importância da publicação na sua formação profissional. “Era tudo horrível, antiquado, sem vida, mas, pouco a pouco, fui reformando a publicação, ao passo que aprendi a fazê-la, aprendendo também a escrever”. Tanto esforço seria destacado pelo colega Joel Silveira, em reportagem para a revista carioca Diretrizes, em 1942, apontando Justino como o principal responsável por fazer da Revista do Globo uma das melhores publicações do país.
Justino era de uma estirpe pouco comum: a do jornalista que sabia escrever – (“Escrever é fácil, ou impossível”, ensinava ao estilo de um professor que odiava didatismos. Completando: “Tens de pegar o leitor pela primeira frase”) – e também reescrever. No jornalismo, inclusive, essa figura chamada copidesque era muito importante para que um texto ganhasse em elegância sem perder em informação.
Já casado com Lucinda – irmã de Mafalda, esposa de Erico –, Justino, a mulher e o filho Carlito foram passar uma temporada em Paris. Lá ele atuava como correspondente não apenas para a Revista do Globo como também para outras revistas nacionais. Um dos textos de sua autoria, sobre o encontro de Brigitte Bardot com Pablo Picasso, chamou a atenção do empresário Adolpho Bloch, que, em 1959, o convidou para voltar ao Brasil e dirigir a revista Manchete. Justino sucedeu a dois jornalistas – Hélio Fernandes e Otto Lara Resende – que, apesar do talento, não conseguiram dar uma cara à revista.
Ao contrário de seus antecessores, Justino soube encontrar equilíbrio no excesso de fotos que tanto agradavam a Adolpho Bloch (são famosas as histórias do empresário triturando com os dentes alguma imagem que o deixara irritado) com um texto que soubesse prender a atenção do leitor. Justino também precisava aliar seu interesse em melhorar o texto e a revista com os interesses do patrão em vender páginas e mais páginas de anúncios e – muitas vezes também – matérias pagas. Adolpho era um oficialista, apaixonado por governos (quaisquer governos) e pelo de Juscelino Kubitschek em especial. Assim, quando JK começou a erguer Brasília, Adolpho transformou a revista quase que num press-release das obras. Justino se revoltava e se adaptava. As reportagens eram publicadas a contragosto. Para Justino, aquilo não passava de “marreta”, o jargão para matéria paga.
Ainda assim, à frente da Manchete, Justino fez da revista um dos grandes fenômenos editoriais da imprensa brasileira, revelando ou estimulando talentos como Carlos Heitor Cony, Fernando Sabino, Carlinhos Oliveira, Roberto Muggiati, Ronaldo Bôscoli, Fausto Wolff e João Luiz de Albuquerque. Este último, inclusive, foi responsável por um dos grandes erros de avaliação de Justino. Em Washington, em meados dos anos 60, João Luiz conseguiu uma entrevista e fotos com os Beatles. Justino não se interessou pelo material. Achava que os Beatles não iam longe.
Como num casamento, o convívio entre Justino e Adolpho foi marcado por paixões e brigas. O patrão adorava exercer seu poder e interferir na revista. Como quase tudo passava pelo seu crivo, Adolpho acertava (e aí, se autocongratulava) e errava (aí culpava Justino). “Viu só, Índio? Tu encalhou a revista!”, era uma das frases preferidas de Adolpho, como lembrou Roberto Muggiati em texto sobre os Anos Manchete. Muggiati sabe muito. Vinte anos mais novo do que Justino, trabalhou 18 anos com ele, seis na mesa de edição, cotovelo contra cotovelo. Foi seu adjunto, sucessor e até antecessor.
Justino era um homem de grandes paixões: o cinema – ia todos os anos ao Festival de Cannes, ganhando na revista o apelido de Cidadão Cannes – e o jornalismo. No começo dos anos 70 sofreu uma grande tragédia pessoal. Em 1971, na sexta-feira véspera do Carnaval, Justino e o filho Carlito foram ao Baile do Havaí, no Iate Clube. Às 9h do dia seguinte, Justino chegou à redação, enquanto Carlito voltava para casa, no Joá, antes de seguir para Petrópolis, onde iria se encontrar com a mulher, a atriz Camila Amado, e os dois filhos. Na Avenida Niemeyer, o carro onde Carlito estava foi abalroado por uma carreta. Ele morreu na hora. Justino soube na redação. Saiu de lá, foi ao necrotério, fez o reconhecimento do corpo e voltou. Arnaldo Niskier, outro colega de Manchete, lembraria anos depois que, de vez em quando, Justino se ausentava para ir chorar na saleta de projeção.
Outra paixão eram as mulheres. Gostava de contemplá-las, seduzi-las e fazer-lhes galanteios. Além de Lucinda, casou-se com Martha Garcia, a primeira Miss Brasília (ironicamente a cidade que tanta dor de cabeça lhe dera) e com ela teve uma filha. Muggiati lembra que Justino vivia a elogiar as mulheres, desde as anônimas até também as musas que ajudou a descobrir e/ou revelar: Duda Cavalcanti, Xuxa, Luiza Brunet, Rose di Primo. Muggiati recorda ainda o folclore em torno da escolha das mulheres na capa de Manchete. Era famosa na redação a frase, com autoria nunca assumida, de que quem era escolhida precisava passar pela sua cama: “Se é capa, não escapa…”. Não havia provas desse comportamento, embora Justino jamais fizesse questão de desmentir. Pelo menos um caso entrou para o anedotário da revista. Certa vez, uma candidata mais arrivista foi cantada por um repórter que lhe prometeu a capa. Ela cedeu e, passados alguns dias, nada de sair a capa. Desaforada, a moça invadiu a redação e foi cobrar de Justino. Sem tirar os olhos do cromo que analisava, ele respondeu. “Mas tu deste pro cara errado, tchê…”.
Dirigir Manchete era como dirigir a seleção brasileira. Todo mundo – do contínuo ao patrão – se achava capaz de resolver a parada; o técnico é burro, troca o técnico. Assim, a partir do começo dos anos 70, tirar o Índio do comando da revista tornou-se uma obsessão para o ciumento Adolpho. Na primeira vez, a manobra não apenas não deu certo como se voltou contra o conspirador. Obrigado a chamá-lo de volta, Adolpho teve de primeiro ouvir um “não” de Justino, que alegava ter um convite para ser RP da grife de Madame Grès, estilista e perfumista de Paris. Na verdade, lembra Muggiati, era uma armação combinada com a Madame, sua velha namorada, que confirmou a história ao Adolpho pelo telefone. O patrão não se deu por satisfeito e fez nova proposta. Dessa vez, Justino aceitou e – como foi lembrado por Muggiati – ainda exigiu um plus: todo o mês ele deveria receber um bônus de mil dólares que deveria ser entregue por um funcionário da tesouraria diante de toda a redação.
Adolpho teria sucesso no plano de afastar Justino da direção três anos depois, em 1975, fazendo com que ele “caísse para cima”. O patrão justificou que precisava dele para criar uma revista de decoração (que nunca saiu) e o homenageou com uma feijoada para centenas de pessoas no restaurante da Rua do Russell. Com esta jogada, Justino se afastou e Muggiati assumiu o comando da revista. Justino foi mandado para uma Sibéria jornalística, a pouco relevante revista Fatos e Fotos, um andar abaixo da Manchete, onde ele tinha direito a um singelo aquário, muito menor e sem ar-condicionado. Cumpriu abnegadamente os anos de exílio, até ser, novamente num xadrez de Adolpho, remanejado para o cargo. Justino manteve Muggiati ao seu lado.
Seria a reta final de Justino – na revista e na vida. O Adolpho que dizia ter tinta nas veias no lugar de sangue, deixou o gráfico de lado e ficou seduzido por transformar seu império de papel numa televisão. A ideia fazia parte de um delírio expansionista e também da intenção de fustigar um velho rival, Roberto Marinho. Justino sempre foi contra. Não via necessidade de embarcar nesta viagem perigosa e intuía que a TV drenaria todos os recursos da revista – o que acabou acontecendo. Foi o aval da editora a um empréstimo para a TV que acabou levando à concordata e à falência.
Justino morreria aos 66 anos em 28 de agosto de agosto de 1983. Muggiati recorda que, com a revista já fechada, Justino lhe falou: “Segura a coisa aí, tchê, que vou fazer uns exames no Hospital dos Servidores”. Foi embora e não mais voltou. Ficou internado 20 dias e foi consumido rapidamente por um câncer fulminante. A Manchete, aos trancos e barrancos, duraria mais alguns poucos anos. Justino acabou sendo poupado de ver a decadência e a derrocada do império que tão bem soube ajudar a construir.