Ricardo Chaves era chamado de “Kadão” por motivos óbvios. Alto, corpulento, era uma figura difícil de não notar, com sua longa barba, olhos fundos e sulcados no rosto, suspensórios, um boné na cabeça e seu proverbial cachimbo pendendo do lábio mesmo quando não estava fumando. Kadão morreu há poucos dias, na sexta-feira, dia 4, e quem recebeu essa notícia nem que fosse de passagem pelas redes sociais teve a oportunidade de notar, nos comentários dos muitos colegas e amigos que se manifestaram sobre a sua perda, outro aspecto superlativo da sua personalidade: aquela unanimidade que antigamente nós jornalistas éramos treinados para desconfiar quando se manifestava, exigindo investigação mais aprofundada. Neste caso, garanto a vocês que a manifestação é completamente fundamentada. Kadão, seu bom-humor, seu talento, sua generosidade e até mesmo os aspectos mais pitorescos de sua personalidade expansiva eram uma unanimidade tão grande quanto sua monumental figura.
Muitos, a esta altura, terão falado de Kadão como grande fotojornalista, autor de algumas das imagens mais reconhecíveis da história recente do país. Entre elas, a foto de Leonel Brizola sobre uma caminhonete cercado por uma multidão em sua volta do exílio. Ou o bucólico registro do mesmo Brizola no mesmo exílio, no Uruguai, cercado por seus cachorros com os campos verdes ao fundo, trajado em roupas informais e com um boné que o fazia parecer um misto de caudilho aposentado e guerrilheiro em refúgio. Ou uma das mais célebres imagens dos protestos dos cara-pintadas contra o governo Collor, na qual uma jovem com o rosto borrado de verde-amarelo faz uma careta vibrante e vitoriosa para a câmera, à frente de uma multidão de outros jovens como ela, levemente desfocados.
Fiz questão de listar só essas por serem todas imagens anteriores à substituição das câmeras de filmes e funcionamento mecânico pelas atuais maravilhas digitais que até fazem o foco automaticamente, ajudando fotógrafos meia-boca (como eu) a fazerem em caráter mediano o trabalho, quando preciso. Kadão era diferente, e talvez, dentre todos os fotógrafos que já conheci, todos fascinantemente malucos, cada um à sua maneira, Kadão fosse aquele mais parecido com o que você esperasse que um fotógrafo fosse. Sua personalidade expansiva e inquieta, em campo, se transmutava em um caçador à espreita, disposto a esperar o quanto fosse preciso para que a imagem se revelasse à sua frente e ele a enquadrasse perfeitamente – o “instante decisivo” por natureza. Quando fazia retratos, por outro lado, Kadão era, com seu humor bonachão e propensão natural a uma boa conversa, capaz de deixar seus fotografados à vontade o bastante para conseguir uma imagem icônica, esse adjetivo que hoje não quer dizer muita coisa mais.
Apóstolo da fotografia
Kadão não era só um fotógrafo, era um apóstolo da fotografia, e muitas de suas brigas diárias compradas na redação eram em sua defesa. Às vezes escrevia recados para os editores de capa afixados no mural sobre como um corte numa foto que ele próprio havia selecionado havia sido inadequado, medíocre, ou até mesmo errado na capa produzida no dia anterior. Um de seus aforismos mais repetidos e que provocaram maior impacto em qualquer pessoa que tenha compartilhado de sua companhia era algo como “foto é que nem gente, se cortar demais, grita”.
Com o mesmo espírito, Kadão deplorou a então nascente moda na internet de “colorir” digitalmente fotos preto e branco, hobby a que se dedicam não poucos aficionados depois do advento das redes – e que hoje tem muitos perfis específicos em coisas como Instagram ou TikTok. Embora muitos dos “coloristas” de fotos antigas sejam pessoas que se dedicam com afinco, como pesquisadores para tentar reproduzir o mais precisamente possível as cores do mundo real das fotos antigas, Kadão simplesmente abominava os resultados, e explicava longamente seus argumentos: a cor sempre parecia artificial e perdia-se com aquilo os nuances sutis de cinza que faziam aquelas fotos serem o que eram. Eu, que discordava do Kadão nesse ponto, não sabia, no entanto, explicar por quê, apenas achava que ele estava sendo um pouco tradicionalista e um pouco teimoso. Dado o que eu mesmo senti vendo a enxurrada recente de idiotas fazendo “imagens estilo Ghibli” com os novos recursos de inteligência artificial, preciso outra vez dar razão a Kadão, como dei razão em muitas ocasiões anteriores.
São coisas que a essa altura já foram merecidamente marteladas em todos os textos a seu respeito – e aliás, com toda justiça. Infelizmente, pra mim, trabalhei pouco com Kadão como fotógrafo – ele passou a maior parte do tempo em que fomos colegas de redação como chefe do setor de fotografia, e, assim, saía menos. Minhas memórias mais caras com Kadão são de outra natureza, a de uma espécie de consciência da equipe, um sábio zen desbocado envolto em fumaça.
Mestre pipeiro
Comecei a fumar cachimbo ali pelo fim dos anos 2000 – não por inspiração do Kadão, simplesmente porque estava a fim. Mas, depois disso, não diria que inspiração seria a palavra, mas houve vários grandes momentos de orientação por parte do gordo pipeiro mais velho a este seu discípulo gordo pipeiro mais jovem e menos digno. Foi por causa de Kadão que descobri o fumo que uso até hoje – Captain Black Royal, que ele comprava religiosamente na Paromas, onde ele sempre me aconselhava a ir – e eu nunca fui, fica fora de mão pra mim. Foi também ele que me apresentou ao melhor fumo que já provei na vida, Troost, um cavendish escandinavo numa simpática embalagem amarela – e que eu só fumei filado do próprio Kadão porque não tem importação no Brasil.
Falo de cachimbo e fumo porque Kadão era presença constante no fumódromo da redação em momentos específicos da tarde. O fumódromo era uma gaiola transparente que ficava no corredor entre as redações da Zero Hora e a da Rádio Gaúcha, e concentrava algumas das mais divertidas cabeças da equipe, numa época em que a estrutura corporativa já havia sido tomada por ascetas psicopatas e metrossexuais que reclamavam do cheiro do pão de queijo no bar.
Era ali que eu também me refugiava para fumar um cachimbo, conversando com amigos como Moisés Mendes (que continuou frequentando o fumódromo mesmo depois de parar de fumar, só pela conversa), Milena Fischer, Joana Saraiva, a saudosa Maria Lúcia Streck, que partiu jovem demais. E, acima de tudo, Kadão. Claro, sendo justo e preciso, também tenho de dizer que Paulo Sant’Anna também vivia por lá, e o Paulo Sant’Anna não era nada disso, embora volta e meia se alimente um incompreensível culto à sua figura devido à sua característica de “iconoclasta de estimação”.
Brilho narrativo
Era em momentos como esse que se tinha acesso livre e direto ao brilho narrativo de Kadão, um contador de histórias como poucos. Kadão havia viajado por todo o Brasil ao longo de sua carreira como um dos grandes repórteres fotográficos do país. Desse modo, quando, nos anos 1990, voltou ao RS natal para ser editor de fotografia na ZH, seu sotaque poderia ser de qualquer parte do país. Sua voz retumbante já havia há muito tempo substituído o “tu” pelo “você”, havia um chiado indistinto misturado com uma cadência quase paulistana (ou talvez italiana, o velho Kadão pendendo cada vez mais para sua herança pelo lado da mãe). É um pouco ingrata a tarefa de tentar explicar para quem nunca a ouviu o quanto essa voz e esse tipo particular de entonação eram parte do fascínio que Kadão exercia sobre seus interlocutores.
E que se diga aqui: generoso como era, brilhante como era, unanimidade como era, Kadão não era um santo de paciência, como muitas das manifestações sobre ele podem dar a entender, e isso apenas somava a seu temperamento acolhedor. Seus conselhos eram pontuados por palavrões de resoluta sinceridade, e suas histórias eram aqui e ali povoadas de malas que conheceu no passado, e que ele nunca se furtava em definir como “um puta cara chato”. E esse bordão, o “puta cara chato”, era um ponto tão alto da narrativa que durante muitos anos eu e meu amigo Luís Bissigo – que ele sim, teve a honra de ser colega próximo de Kadão quando ambos passaram a editar a seção Almanaque Gaúcho – a repetimos em tom de brincadeira quando queríamos nos referir a algum cara chato em particular, tentando reproduzir seu modo único de dizer a frase, e falhando miseravelmente.
Kadão representava algo valioso que se extingue rapidamente no jornalismo de hoje. Um veterano generoso a funcionar como elo de transmissão de saber na cadeia do ofício. Posso dizer que me sinto sortudo por haver trabalhado com muitos desses em meu tempo, mas, infelizmente, isso não durou. Houve uma juvenilização forçada e acelerada das redações, e isso teve seus custos. Todo jovem jornalista se acha a última bolacha do pacote, e provavelmente apenas um em cada cem mil está realmente certo nessa apreciação. Isso não é um defeito do jovem, é parte de seu potencial, que atinge plenitude no contato e até mesmo no confronto direto com os profissionais mais experientes. Se você carrega a mão demais na receita para um lado ou para outro, você pode ter uma equipe engessada cheia de gente antiga e sem ousadia, ou uma turma de aspirantes a influencers que sabem tudo sobre a vida da Taylor Swift ou de algum BBB da última edição, mas nunca ouviram falar em Vladimir Herzog. Só falar que isso é normal porque é o “espírito do tempo” não ajuda. É em parte esse espírito do tempo alienado que permite que vozes reacionárias se levantem para criar um novo tempo com possíveis novos Herzogs prontos para acontecer.
Somos, os jornalistas, uma espécie de guilda profundamente fraturada porque a maioria de nós tende a supervalorizar nossos méritos individuais (bom texto, experiência, fontes, malandragem, jogo de cintura). Isso, mais o processo irreversível, aparentemente, de juvenilização das redações, levou ao quadro que temos hoje. Já há 25 anos havia um editor-chefe com quem trabalhei que martelava a ideia de que os leitores de jornal eram um grupo geriátrico e o público precisava cortejar os jovens – o que só poderia ser feito com uma multidão de jovens nas equipes. Um quarto de século depois, o que vejo são os grandes veículos com uma equipe juvenil algo desconjuntada e agora tendo que cortejar em desespero o bafio senil da horda bolsonarista, já que os jovens estão todos dançando no TikTok.
Assim, despedir-se de Kadão é também despedir-se de um tempo, de uma ideia de ofício, despedir-se de um modo de fazer jornalismo.
Talvez você aí diga que esse modo não tem mais lugar mesmo, e é seu direito.
Assim como é o meu considerar você que acha isso um puta cara chato.
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Foto da Capa: Jefferson Botega / Agência RBS