Volta e meia, na década passada, quando revistas impressas ainda mantinham alguma relevância em termos de circulação e impacto no discurso público, não era incomum que alguma delas, da “nichada” Superinteressante à mais generalista Veja, publicasse alguma manchete de capa com um título que disfarçava o que era declaração alarmista com um ponto de interrogação: “A Internet está deixando você burro?”. Acho particularmente engraçado lembrar disso quando a cada semana multiplicam-se os sinais muito óbvios de que, se houve uma coisa que de fato emburreceu a olhos vistos na esteira da Internet foi o próprio jornalismo.
O exemplo mais recente – e que, claro, é o pretexto desta coluna, como imagino que meus espertos seis ou sete leitores já adivinharam, foi o recente “cancelamento de Kafka” ocorrido esta semana. Para quem, como eu, não sabia até ontem ou não entendeu muito bem mesmo quando soube, o que houve foi que, aparentemente, “alguém no Twitter” sentiu-se horrorizado porque descobriu, numa googlada ao escritor tcheco Franz Kafka (1883- 1924), que ele era “frequentador de prostíbulos” e “viciado em pornografia” (sendo que a pornografia disponível na época para um cara como ele tinha mais ver com os catecismos do Carlos Zéfiro do que com a música do Brazzino, o jogo da galera). Daí alguém fez outra postagem horrorizando-se com a postagem anterior e apontando que, por ser um putanheiro, Kafka estaria sendo “cancelado”, e de repente você tinha os grandes jornais como Folha de São Paulo, Estadão e O Globo “repercutindo” a história e daí realimentando o escândalo das redes e gerando novas matérias etc.
Lógica de algoritmo
Se a explicação ficou meio vaga é porque eu quis preservar, ao menos por enquanto, a noção de quem buscava se informar sobre o caso em qualquer um dos veículos que deram o primeiro chute nessa polêmica, e o que eu concluí ao tentar entender com um pouco mais de profundidade a coisa foi que, assim como outras polêmicas que andam circulando pela sua tela praticamente todos os dias, essa foi uma polêmica artificial criada pela própria imprensa, que depois a inflou o máximo que pôde na tentativa de cumprir o acordo com o diabo que o jornalismo online contemporâneo precisa assinar a todo momento: produzir likes e engajamento…
Há toda uma discussão aí que, infelizmente, não está em curso nas redações de jornais (confiem em mim, eu sei): o quanto, no momento em que você baseia o seu negócio na necessidade de agradar ou de provocar reações, você não está na verdade matando a matéria-prima de seu próprio negócio, a informação que está fazendo circular. A imprensa gosta de apontar o dedo para a estrutura do algoritmo das grandes Big Techs, e sim, é assim que funciona e isso tem tido resultados complexos e danosos no mundo real: o conteúdo mais “extremo” ou que provoca o maior número de reações emocionais exacerbadas, sejam elas quais sejam, é o que mais ganha impulsionamento pelos algoritmos de Google, Facebook, Twitter, TikTok, etc. Só que a imprensa se esquece de dizer que ela própria, com esse modelo de publicação constante de notícias feitas em série, na maioria recebidas ou simplesmente copiadas de outras fontes, publicada por jornalistas muito jovens sem bagagem de nada, trabalhando sobre pressão e ganhando muito pouco, também funciona na mesmíssima lógica que critica.
Mas o centro deste meu texto não são os efeitos a longo prazo, é o puro e simples mecanismo que leva isso adiante. Minha implicância é com esse jornalismo online 24 horas que, em nome do pico diário de engajamento pela polêmica vazia, está criando as próprias polêmicas sem nem mesmo um grãozinho de esforço jornalístico esteja sendo despejado na receita.
A história de fato
Originalmente, a maioria das notícias que correram para registrar o “cancelamento de Kafka” na mídia brasileira referia-se como origem da coisa um comentário feito por uma usuária do antigo-Twitter-que-eu-ainda-chamo-de-Twitter-e-o-Elan-Musgo-que-vá-pro-diabo chamada Gaby Vasques. O Globo chegou a citar textualmente um tuíte da moça, mas não se dignou a creditá-la pelo nome. E o tuíte dessa brasileira, que parece ter detonado a corrida maluca da imprensa atrás do caso, já era ele próprio uma “reação” a um suposto cancelamento do qual poucos usuários do site em língua portuguesa tinham ouvido falar ainda: “Estão cancelando o Franz Kafka pq ele consumia porno (SIC) e ia em bordel. Eu não acredito nessa rede social”. Vasques então era meio que o ponto de partida das notícias sobre o caso, algo que se estendeu até ela própria oferecer um contexto para a coisa, dado o aluvião de visitas que sua postagem gerou.
Na verdade, a moça estava reagindo a outro tuíte feito por uma usuária de língua inglesa, uma jovem canadense chamada Vivian, que publicou um “print” de uma página de pesquisa no Google sobre “por que Kafka nunca se casou” em que as principais respostas contavam que, segundo seu amigo (e traíra a quem a literatura deve muito) Max Brod, Kafka era um sujeito lúbrico “assombrado pelo sexo”. E de que, segundo seu biógrafo Reiner Stach, ele “frequentava prostitutas” e era “adepto da pornografia”. A moça essa canadense fazia um breve comentário aberto a muitas interpretações: “Oh!”, e era isso.
Logo, todas as notícias criadas pela imprensa no calor da hora do “cancelamento do Kafka” partiram de uma mesma fonte, embora os jornalistas responsáveis não vão admitir isso. Um tuíte de uma pessoa reagindo a um tuíte de outra pessoa e que nem era tão negativo assim na origem. O primeiro tuíte, claro, deu origem a outra manifestação de outra pessoa, esta sim agressiva, um comentário uma ativista feminista identificada simplesmente como “Giulia” (não consegui apurar de onde ela seria) e que comentava que esperava que as muitas “garotas que romantizam citações da obra” de Kafka soubessem que ele era viciado em pornô e que pagava por sexo.
Nota pessoal: uma possibilidade de esse pessoal ter sabido isso mais cedo era ler a própria biografia do Reiner Stach citada no texto, mas aí é um tijolo de quase 2,4 mil páginas e eu duvido que tenham vontade, preferindo provavelmente essa frasezinha do google.
Descoberta uma mulher que realmente se incomodou com a informação, a imprensa brasileira correu para corrigir seus próprios textos. A própria Folha publicou uma reportagem mais correta sobre o tópico um ou dois dias depois na Ilustrada. Acho interessante que os jornais hoje usem seus suplementos dos tempos do impresso para organizar e publicar de modo correto as milhões de informações dispersas e bolas foras que os repórteres do online vão produzindo uma a cada minuto.
Kafkiano
Há uma série de discussões interessantes sobre esse tema. Como o fato de Kafka, um precursor do absurdo na literatura (em uma obra com tanto impacto que criou ela própria seus precursores, como defende Borges), esteja sendo vítima de um cancelamento póstumo numa época em que muitos têm levantado o paralelo algo perturbador entre o “tribunal das redes” e os procedimentos sem pé nem cabeça que Kafka descreve no seu O Processo (curiosamente, Kafka tinha a certeza de que seus livros eram comédias do absurdo. O mundo que se seguiu a ele se desumanizou tanto que hoje elas não têm mais a mínima graça e estão mais próximas de pesadelos cotidianos). Mas eu não vou entrar em nenhuma dessas discussões, eu sou jornalista, escritor e crítico literário, são esses meus campos de conhecimento e é neles que prefiro ficar hoje.
Quando eu trabalhava em redação, havia uma certa desaprovação tácita entre os praticantes do ofício dirigida a editores que “esquentavam” uma reportagem, prometendo no título algo que não se verificava no texto ou mesmo escolhendo ressaltar algo que não era o principal da notícia, mas tinha poder de “criar escândalo”. Hoje, aparentemente, criar o escândalo é o procedimento padrão, o título caça-clique é a norma e mesmo quando anunciam suas notícias nas redes sociais, jornais não dizem a informação mais importante na postagem tentando levar o leitor a acessar o site e ser mais um número na “métrica” que o pessoal do departamento de marketing usa para tentar atrair os anunciantes num momento em que a circulação não diz mais nada e o número de possíveis lugares para se anunciar se amplificaram, ainda mais na internet. Já escrevi sobre isso, aliás. (AQUI)
“Aihn”, me dirão alguns, “mas os jornais precisam atrair o leitor para suas páginas ou não terão receita e fecharão”. Será que é esse o jeito de fazer ou todo mundo está só copiando o que fez originalmente algum CEO importado do google, onde serviu cafezinho por três meses antes de voltar montando planos de gestão mirabolantes nos veículos brazucas sem saber se dá resultados ou não? Os jornais sempre precisaram ser comprados, também, e isso não impedia que o básico de uma manchete ou título fosse veiculado na porra de um cartaz ao lado da pilha de jornal. Tá certo que a receita publicitária era o que mantinha esse modelo e hoje ela não existe mais, mas duvido que os jornais tenham muito a ganhar disputando com as armas de influencers e dizendo em suas redes: “aconteceu um bagulho muito doido, mas você vai ter que ir no nosso site ver”. Aí, você chega lá, e é uma não notícia inventada pela própria imprensa e relatada com uma apuração porca. O já combalido jornalismo não tem como se provar relevante fazendo apenas o marketing da relevância.
Chico
Não é o primeiro desses casos que me deixa algo perplexo. Considerando a velocidade com que essas polêmicas vazias se sucedem, talvez vocês nem se lembrem mais, mas há exatos dois anos, no fim de janeiro de 2022, se tornou notícia repercutida por todos os portais corporativos do jornalismo uma suposta “decisão” de Chico Buarque de “não mais cantar” sua música bastante conhecida Com Açúcar e com Afeto porque a letra envelheceu mal e é considerada machista, algo que teria sido trazido à atenção do Chico por movimentos identitários” ou “grupos feministas” (embora ninguém dissesse exatamente quem ou quais).
O que acho surpreendente nesse caso é outra vez a imprensa tentando capitalizar likes e engajamento em vez de cumprir aquele que é propagandeado como o grande “diferencial” do agonizante jornalismo corporativo, a ideia de oferecer um “contexto comprovado” para as informações que circulam desenfreadas numa cacofonia desconcertante. Sendo mais direto: naquele episódio (e em vários outros nos últimos anos, qualquer um de vocês pode elencar um nos comentários, se quiser, estes são os que eu me lembro sem nem precisar pensar), a imprensa, para manter quentes os índices de visitação de seus sites e garantir que sua notícia do tema apareça nas pesquisas do Google, surfou numa mentira e apresentou a “decisão” de Chico como uma “notícia”.
Qualquer manualzinho furreca de jornalismo dá uma ideia mais ou menos definida do que é notícia. A notícia é um fato – há toda uma discussão acadêmica no campo do jornalismo sobre “o que é” fato, o quanto ele reflete “a verdade” e mesmo qual ou quanto se pode usar “verdade” para o que imprensa diz perseguir no cipoal de definições filosóficas e epistemológicas desse termo. Mas vou poupar vocês disso e ir direto às implicações pragmáticas, o que no fim é o que fazem as redações (jornalistas costumam se considerar intelectuais, mas seu ofício muitas vezes é exercido num ambiente de rampante mentalidade anti-intelectual, classificando a atividade de um repórter mais como uma “ação” do que como uma “reflexão”. O repórter “puro-sangue” não pensa, ele vai lá e descobre. Pensar é pros acadêmicos que teorizam sobre jornalismo “sem nunca ter pisado em uma redação”, como ouvi de mais um editor em mais de três décadas de carreira em redação). Como eu dizia: notícia, no entendimento funcional das redações, é um fato que ocorreu recentemente num determinado tempo e lugar e que merece atenção ou por ser um fato novo adicionado a um contexto já estabelecido, ou por ser inédito em qualquer contexto, ou por ser curioso, inusitado e surpreendente, ou por ser protagonizado por pessoa de grande interesse e relevância.
Não é necessário que todos os requisitos sejam cumpridos simultaneamente, aliás, e a polêmica da música do Chico até cumpria parcialmente UM desses postulados: era relativa a uma personalidade de grande relevância na trajetória cultural do Brasil, o próprio Chico. Mas, e aqui fica o nó, mesmo assim, não era notícia, e sim apenas mais um capítulo dessa capacidade aparentemente inesgotável do jornalismo caça-cliques rasteiro de internet de criar um problema numa situação resolvida e fazer todo mundo postar a respeito (uma armadilha que captura, tenho consciência disso, mesmo que escreve sobre o caso de uma perspectiva crítica, como estou fazendo. Porque crítico ou não, este é mais um texto sobre o caso).
Não assunto
Demorou algum tempo no aluvião das notas de cinco linhas em que nada era novidade, todas umas copiadas das outras e recheadas com um bando de detalhes que não faziam diferença para o que de fato importava na notícia (vocês não têm como me enrolar com essa, coleguinhas, eu mesmo já escrevi textos assim) para entender que “a decisão” tomada pelo Chico não era uma decisão e nem era recente, embora todas as manchetes clickbait sobre o assunto quisessem te convencer do contrário: “Chico não vai mais cantar…” “Chico decide não cantar mais”. “Chico anuncia que….”
O Chico meio que mudou de ideia sobre a música, mas isso não era um fato novo, era simplesmente a imprensa descobrindo que ela não sabia alguma coisa e correndo para disfarçar sua ignorância como notícia. O Chico não cantava a música em shows desde 1975, um ano depois de eu ter nascido, para ver como a coisa é velha. Cantou uma vez na TV em 1986 e depois nunca mais.
Ou seja, o assunto só começou, em primeiro lugar, porque algum jornalista que não sabia que o Chico não cantava mais a música há décadas viu ou ouviu falar disso num documentário que estava começando a circular lá em janeiro de 2022 sobre a vida da Nara Leão, onde esse tópico era mencionado de passagem. Daí, seja lá quem ouviu isso e resolveu fazer uma notícia pra subir no ar sem apurar o básico: ele cantava antes? Parou agora? Cantou no último show? E aí todo mundo correu para fazer.
Antigamente, parecia haver uma certa vergonha da imprensa de admitir que era idiota, mas agora, na corrida pelas métricas e pelo engajamento, na sanha desenfreada dos monitoramentos de índices e de “trending topics” e na correria pouco ética das “escutas” (jargão que vocês não são obrigados a saber o que é, então explico: a orientação aberta dentro das redações de simplesmente copiar o texto de um outro veículo disfarçando a cópia para poder surfar na onda dos cliques – um “copia, mas não faz igual” entronizado como procedimento jornalístico padrão), aparentemente liberou geral e a imprensa transformou em protocolo fazer da sua ignorância e do seu desconhecimento a própria notícia. E isso, para a credibilidade de qualquer veículo, é tão prejudicial quanto qualquer fazendinha de “fake news“.
Ilustração da Capa: Criação do Autor por IA