Talvez, uma das maiores presenças do (já em ocaso) American Way of Life no jeitinho nosso de cada dia seja o préstimo dos duráveis e práticos Tupperware que, de tão íntimos em nossas prateleiras, já respondem pela alcunha de tapaué. Não requerendo ser o original (que é sempre mais caro) para receber essa denominação.
O modo de vida contemporâneo envelheceu as porcelanas e suas coberturas esmeradas. A movimentação e manuseios apressados nas cozinhas integradas ao que seja o espaço da mesa de café com o lugar da máquina de lavar roupas e o cantinho das vassouras é mortal para a preservação daquela espécie de utensílios que compunham o habitat das salas de jantar de nossas avós. Até mesmo as mais acessíveis (e robustas) louças de cerâmica se extinguem mediante às necessidades inerentes ao entra-e-sai nos refrigeradores.
Pragmáticos, os sobrinhos de Uncle Sam revolucionam o vaivém no lugar mais frequentado de qualquer residência, introduzindo polietilenos e polipropilenos onde antes só havia argila fornalhada.
Por aqui, esses utensílios, a despeito de sua concretude plástica, tangenciam uma aura de sofisticação: compunham o serviço em vanguardistas moradas, circulam nos refeitórios mais descolados e seus conjuntos articulados podem até constar como sugestão em lista de presentes matrimoniais.
Assim, na dinâmica dos clãs brasileiros, o câmbio de tigelas, vasilhas e terrinas criadas pelo avanço da química industrial é um fenômeno inerente à circulação do que podemos chamar de capital afetivo: presentear uma lasanha, obsequiar um pavê ou até mesmo o que sobrou de uma gordurosa feijoada reveste-se de maior valor simbólico quando a dádiva está acondicionada num autêntico tapaué.
Ofertar o que se preservou do resultado da perícia e esmero culinário num colorido policarbonato jamais se confunde com o óbolo de sobras.
Dada à sua importância no processo de arrumação de nossos víveres, não se esquece quem nos entregou aquele plástico de marca registrada, pode-se até perder a referência de quem esqueceu em nossa casa um pano de prato ou até mesmo uma replicada assadeira duralex. Todavia, seja pela cor, pelo formato inusitado ou o uso especificado, dificilmente esquecemos de quem é um tapaué: memória que presentifica a querida pessoa doadora em nosso dia a dia.
Recentemente, num aplicativo onde um grupo de irmãs e irmãos é compartilhado, uma das pessoas, por pura dificuldade de acionar essa sofisticadíssima tecnologia digital, em instantes de emocional urgência, postou uma mensagem de áudio (que deveria ir apenas para um determinado membro da família) no grupo de todos, deixando vazar verdades íntimas que nós, irmãos, só dizemos sobre um outro quando esse não está por perto.
A querela instaura-se: aqueles comentários que, se não fosse a inabilidade no traquejo com o software, não passariam do natural exercício familiar de fortalecer os laços mútuos, colocando cada um, periodicamente, em sigilosa berlinda, se avolumam como um vendaval anômico. A ofendida, encaminhando o rompimento profundo dos laços de irmandade e visando ferir cruelmente a ofensora, iniciando doloroso processo de partilha, estipula: não me devolva potes de sorvetes, pois, o que eu lhe dei foram tapaués!
Acredito que a circulação de afetos no seio das parentelas não é um comércio: não segue a lógica oferta-procura como padrão de atribuição de importâncias, o capital acumulado não pertence apenas a uma das partes, porém, à relação…
Ferida em sua alma, a ultrajada revida, golpeando fatalmente a combinação tácita entre irmãos no que, para ela, poderia haver de mais simbólico: o intercâmbio dos invólucros de qualidade que abrigam o feijão nosso de cada dia…
Contudo, já adianto que os potes não foram devolvidos.
A involuntária injuriante sente o contragolpe, sente que a devolução da industrializada cumbuca significa o rompimento de vínculos: entregá-los é subscrever a ruptura. Por conseguinte, empreende o reconhecimento do erro e o pedido de perdão. E, a consequente manutenção dos vasos flexíveis em seu armário preserva a translação das órbitas dos apegos.
Destarte, o tapaué, diferentemente de qualquer embalagem reutilizada de margarina, segue sua sina: acondicionar algo, cuja natureza tenha um quê de afetuoso. E, tal qual um exoplaneta, não deixa de dar alguma contribuição para a harmonia orbital da constelação dos astros daquele universo.
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Foto da Capa: Gerada por IA.