As incertezas, as inseguranças e o rumo da humanidade inquietam aqueles que estão tentando entender as transformações do mundo. Por que o avanço da extrema direita? Por que tantos candidatos que têm feito um péssimo serviço se elegeram? Como explicar o inexplicável sob o ponto de vista da racionalidade?
Depois que ouvi Vincenzo Susca, pesquisador no Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre o Real e os Imaginários Sociais (Leiris), professor de Sociologia do Imaginário na Universidade Paul Valéry, em Montpellier 3, na França, consegui juntar peças – até então desconexas – para compreender um pouco mais o contexto em que estamos mergulhados.
Ele lançou na 70a Feira do Livro de Porto Alegre “Tecnomagia: êxtase, totem e encantamento na cultura digital” (Editora Sulina), traduzido por Luana Chinazzo. Tive o privilégio de assistir à sua palestra em uma aula do mestrado na PUCRS. Susca é italiano e já lançou diversos livros no Brasil.
Ele argumenta que hoje a tecnologia está nos controlando. Aquele humanismo, que antes regia a centralidade da civilização, onde o diálogo e a racionalidade deviam imperar, está sendo substituído pela emoção. Isso quer dizer muita coisa. A começar pelo nosso próprio comportamento. As telas, em especial as dos smartphones, nos comandam. Mandam e desmandam. E o pior: não aspiramos sair desse circuito de escravidão.
Já no prefácio do livro, ele anuncia:
“As luzes do nosso tempo cintilam na escuridão. Ao longo da época moderna, acariciamos o mito de que o progresso, enquadrado por um plano racional, conceder-nos-ia a emancipação de todo tipo de escravidão, bem como bem-estar e felicidade. No entanto, séculos de produção, acumulação e consumo desenfreados nos lançaram em um presente sombrio, no qual a alienação e a depressão reinam soberanas, com o fogo de palha do sucesso e os simulacros do entretenimento como corolários. Enredados nas malhas das redes digitais, dominados pela inteligência artificial e algoritmos, submersos por crises sanitárias, catástrofes ambientais e guerras brutais e sem precedentes, estamos aprisionados por vontade própria a correntes sem fio que não podemos e não queremos mais romper”.
Só esse trecho já dá para ter uma ideia por onde transita o pensamento de Vincenzo Susca. E ele comentou que na França os seus alunos também fogem da leitura (quem convive com jovens sabe bem disso). Há uma dificuldade em abstrair ideias. Há uma crise de abstração onde a empatia se coloca acima de tudo. E isso vem sendo aproveitado por quem já captou como conquistar corações. E eleitores.
Um dos exemplos que traduzem essa realidade são as estratégias adotadas pela campanha presidencial do candidato republicano nos EUA. Para Susca, quando Trump coloca música e começa a dançar em pleno comício por 39 minutos, fica explícito o quanto estamos deixando para trás a era da racionalidade.
Esse aspecto evidencia o quanto os partidos mais à esquerda estão perdendo o bonde da história na hora de se comunicar com o público. Vincenzo Susca argumenta que os intelectuais, os tomadores de decisão de partidos mais preocupados com o social, ainda estão apegados à tradição da racionalidade. E nós agimos conforme nossas emoções, muito antes de pensar. E aí entra o jogo sujo, que beira o ridículo, mas que boa parte dos simples mortais cai como patinhos.
Até pouco tempo atrás, se achava que a tecnologia estaria a serviço dos seres humanos. Ledo engano. Hoje, a ideologia da tecnologia desmorona construções que levaram milhares de anos para serem edificadas. E tudo muito rápido. Ele remete à síntese de Jean Baudrillard: somos criaturas da nossa própria criação.
Tudo isso faz parte do que ele chama de tecnomagia. Nós hoje nos colocamos a serviço da tecnologia. Desde quando se joga um Candy Crush, quando se posta um reels no Instagram, quando damos um like ou comentamos algo no Facebook, quando acabamos de acordar e conferimos as mensagens de WhatsApp. Tudo que fazemos é computado, gera $$ e alimenta os bancos de dados dessas grandes companhias, as tais big techs. Elas sabem mais de nós do que nós mesmos. Recebemos os anúncios de que temos interesse. Somos rastreados e o capitalismo de vigilância segue expandindo trilhas de todos os tipos.
E ele vai além: “As redes sociais são formas de masturbação e de suicídio coletivo”. Ele embasa sua declaração contando casos que circulam no TikTok e no YouTube. Há anúncios explícitos do quanto a vida está dessacralizada. Adolescentes socializam comportamentos que jamais imaginaríamos. Vincenzo Susca alerta que estamos vivendo sob o domínio de um inconsciente digital, com coleiras eletrônicas.
Escravidão contemporânea
A tecnologia proporciona vários tipos de escravidão. Para se ter uma ideia, Susca cita o quanto recebe um trabalhador em Bangladesh por uma jornada de 13 horas por dia: dois euros (cerca de 13 reais). O valor é pago para alimentar os metadados de inteligência artificial.
Vincenzo Susca acredita que vivemos em um estado de mutação antropológica. E isso significa que precisamos estar prontos para o fim do indivíduo moderno, onde a techomagia nos envelopa. O imaginário neoliberal repercute e trabalha de várias formas o quanto todos somos empreendedores. Será que todos temos condições de ser isso?
O que fazer diante desse contexto? Quais são as consequências da busca incessante pela satisfação, pelo prazer imediato? Como ampliar a percepção dos riscos que nos cercam em meio às tantas complexidades que rodam a emergência climática?
Pois Susca considera que tudo isso faz parte de uma dança. Na verdade, nós somos “dançados”, não dançamos exatamente no estilo que queremos. No ritmo alucinante do nosso tempo, damos passos para trás e para frente. Com avanços e retrocessos. Ele acredita que o Brasil tem alta capacidade de buscar prazer e liberdade.
Para finalizar, Vincenzo Susca diz que precisamos aceitar o fim de um mundo, mas “que não é o fim do mundo”. Para mim, ficou claro que devemos estar atentos às pistas (não só dos caminhos, mas as de dança) que esse futuro nos leva. Trocar passos e coreografias nos andamentos Allegrissimo, Andante e Prestissimo requer serenidade, discernimento e muita disposição.
Foto da Capa: Vicenzo Susca em Porto Alegre / Fotos - Acervo da Autora
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