Pelo jeito apenas eu acreditei em um ponto final da minha história de amor em Paris.
Existe uma distância maior que Porto Alegre – Paris – Bangladesh entre a razão e o coração.
Se você não leu as outras crônicas seja bem-vinde a história de amor, nada planejada entre uma brasileira e um Bengali imigrante na França. Primeiro, eu batizei de um amor multicultural, mas hoje já o reconfiguro como uma tentativa de amor intercultural, e me segue aqui neste fio sobre mim e meus sentimentos que você irá entender.
A cultura brasileira do amor. Já pensou sobre ela? O que é a vivência amorosa do amor em todas as suas dimensões no Brasil? Talvez tenhamos sobre nós uma percepção que precise ser repensada ao nos confrontarmos com outras culturas. Mas hoje olhando de outra perspectiva vejo que a nossa vivência de amor passa por muitas nuances que conseguimos identificar na cultura dos outros como ‘estranhas”, ou impensáveis, ou até cruéis. Apesar de sermos um país continental formado por muitas imigrações externas acabamos reproduzindo uma cultura amorosa excludente, sem tanta abertura intercultural, como pensamos.
Olho ao meu redor e vejo meus amigos, mas são pessoas brancas entre si, ou então ricas entre si, pois a instituição casamento acaba sacramentando o aceitável, o aprovável. E o que foge do establishment é vivido, confrontado, temos até um termo no Brasil: “não combina”. Uma expressão da percepção ao se olhar visualmente os amantes e compará-los em termos físicos, étnicos, culturais, sociais e econômicos. Annita chegou a fazer um vídeo-desabafo nas redes sociais sobre os comentários de “não combina” com o atual parceiro italiano.
Assim como o “não combina” é uma maneira brasileira de avaliar compatibilidades amorosas, sabemos que ele também se aplica consciente e inconsciente entre pessoas brancas e pretas, entre pessoas de origens étnicas diversas, entre religiosidades então nem se fala. No Brasil, a intolerância religiosa persiste inclusive com o assassinato de uma yalorixa quilombola. Então imagina no amor. Nosso amor é uma escolha política cultural.
“Paty… Sorry all (desculpe-me por tudo.)
Quando te conheci em Paris e recebi teu olhar carinhoso de volta, eu esqueci de tudo.
Vivemos dias tão lindos, leves e amorosos.
Quando você foi embora: o mundo caiu para mim.
Percebi que te amar era ir contra os preceitos da minha família, cultura e religião.
Por isto, te mandei mensagens dizendo que não temos futuro.
Realmente não posso pensar em um futuro com você.
Pois minha família tem um casamento arranjado onde esta futura noiva deve ser do meu país, falar minha língua e cuidar dos meus pais.
Porém, não consigo parar de pensar em você, em nós…
Estou confuso. O que fazer?
Pela minha religião ter ficado sexualmente com você fora do casamento irá me levar a ser queimado no mármore do inferno.
Você deveria se casar com alguém da sua cultura, sua língua e seu país.
Isto garante um bom casamento e uma estabilidade da comunidade.”
Quando recebi esta mensagem e um pedido de vídeo onde ele pudesse olhar nos meus olhos pela última vez. Eu fiquei sem ação e pensei: é agora o meu maior teste de entendimento das diferenças culturais, e a hora que preciso jogar um olhar amoroso sobre a perspectiva de uma outra visão de mundo.
Antes de tudo pensei: o que eu sei de Bangladesh? Onde é este país? O que eu sei sobre a religião islâmica? O que eu sei do encontro destas duas coisas? NADA. Como posso simplesmente julgar com a visão brasileira do “É Kaô” (gíria LGBTQUIA+) para mentira.
E a Paty pesquisadora fez a Paty amante sentar do lado e foi pesquisar: Bangladesh.
País dissidente da Índia com uma das maiores populações do mundo e menor índice de IDH, PIB baixo, que hoje serve como base para a indústria da moda fast fashion. Uma mistura de cultura indiana baseada em castas, casamentos arranjados, tradição medieval onde os jovens imigram para a Europa e EUA em busca de trabalho e renda para sustentar do exterior seus pais, crianças e anciões. Uma mistura para todos entenderem de situações da novela Caminhos da Índia misturado à religião islâmica. Uma simplificada básica. Mas para situar. Mas também um país perto de Miramar. Com monções e cultura agrícola, e onde vivem os raros tigres de bengala. Perto da Tailândia.
Paro em uma notícia de 2022: Jovem bengali de 18 anos, vivendo desde pequena na Inglaterra, é levada para visitar parentes, mas é sequestrada e ameaçada pelo pai de morte para que ela cumpra um casamento arranjado. A jovem usa seu celular e avisa o namorado na Inglaterra, e como já cidadã inglesa a polícia internacional consegue intervir. E a jovem volta para Inglaterra e para os braços do jovem inglês.
Nesta cultura, o amor romântico não é protagonista. O protagonismo é o do casamento como estratégia econômica, ou seja, o conceito original da instituição. Mesmo vivendo em sociedades estrangeiras estes imigrantes mantém suas culturas de maneira fechada e impermeável.
Estes aspectos seriam suficientes para que a razão prevalecesse. E esta chamada fosse a última. E se você ainda pensa: aí meus Deus… isto existe em 2023? Sinto dizer que vi um caso de tentativa de assassinato de mulher de família mulçumana em Canoas (RS) por ela se recusar a casar na comunidade. Ou seja, existe e está mais perto que você imagina.
Chego à conclusão que nos imaginamos enquanto sociedades humanas melhores do que realmente somos. E não vamos só olhar o defeito da religião e cultura alheia porque questões como estas têm muito a nos ensinar em como construir uma sociedade mais inclusiva que vá do amor a outros aspectos como justiça e permeabilidades. Eu poderia ainda trazer mais e mais dados do que descobri, inclusive existem projeções de aumento da religião mulçumana no mundo até 2050. Mas aí estaria misturando tudo pois o caso de Bangladesh não é exclusivamente religioso. É uma mistura de cultura, religiosidade e práticas seculares que configuram um terceiro contexto.
Mas e eu e o Rana nisto tudo? Uma brasileira não típica da fila que anda, que se interessa por construção de entendimento intercultural e ainda acredita no amor?
“Ok, Rana. Não quero desconsiderar sua cultura e religião. Mas existe outras visões de mundo.
Mas posso afirmar uma coisa certa: você não irá para o inferno por me amar e me desejar.
Você pode decidir, escolher seguir seus preceitos, mas para o inferno você não irá.
E também te digo que me casar com alguém do meu país não me garante entendimento.
E desculpa não acredito em casamento. Eu acredito em viver o amor.
Ele pode ser bom, pode ajudar a construir pontes e a tornar a vida mais leve.
Mas também pode trazer conflitos.
Você leu Romeu e Julieta?”
Não sei aonde iremos ou que faremos, mas só sei que ele continua ligando e pedindo para me olhar nos olhos. E eu ligo a câmera porque, apesar de tudo, o Brasil que existe dentro de mim grita que é possível ser livre, e um dia sermos um mundo sem barreiras, interdições e fronteiras.