Desde minha coluna da semana passada, faço uma analogia desse momento absurdamente triste que o Rio Grande do Sul vive com a experiência de uma doença grave e crônica como o câncer. Insisto aqui nessa associação.
Assim como na área da oncologia, existem exames preventivos que poderiam ter sido feitos. Pior ainda: foram feitos, os resultados detectaram anomalias nos sistemas de drenagem, nas comportas do cais da avenida Mauá, nos avisos meteorológicos, mas o impaciente e negligente paciente leu os laudos e nada fez. Preferiu investir em outras agendas.
A doença veio, devastou ruas, avenidas, pontes, como células doentes que correm pelas veias sanguíneas e se proliferam. Destroem tecidos saudáveis, memórias, matam amores, desabrigam. No caso do câncer, o tratamento é muitas vezes mais agressivo do que a própria doença. No caso do negacionismo climático, o devastador não é o tratamento, mas a sequela e as perdas materiais e emocionais de um desequilíbrio primordial que se escancara e mostra sua fúria acumulada e mal-cuidada.
Estamos doentes, mergulhados em neoplasias sociais, econômicas e políticas. A sociedade civil então se levanta como um sistema imunológico que desperta para tentar eliminar, mesmo que tardiamente, as células invasoras e doentes que não deveriam estar ali correndo livremente pelas veias e se instalando em órgãos vitais. Estamos lidando com metástases que não precisariam ter surgido se tivéssemos realizado os tratamentos preventivos quando os laudos saíram.
A responsabilidade é do Estado, as consequências somos nós quem temos cuidado. Moradores, vizinhos, voluntários. Como um tratamento paliativo, estamos remando, limpando, acolhendo, alimentando, ouvindo e tentando oferecer conforto e menos dor a um organismo caído e enfraquecido.
Conseguiremos tornar esse tratamento curativo? Conseguiremos aceitar as perdas que um tratamento adjuvante ou neoadjuvante causa e todos os efeitos adversos que ele provoca? A perda do cabelo quem sabe poderia ser a perda do privilégio de poucos que, como brilhantemente li nas palavras de Galeano, preferem a caridade – vertical – em detrimento da solidariedade – horizontal. As náuseas típicas seriam dos governantes que precisariam abrir mão de seus interesses escusos e dirigir verba à manutenção da cidade. Mas, acima de tudo, a perda da ingenuidade, da onipotência e da certeza de que somos imortais que acompanha todos ou quase todos os pacientes que já escutei em minha trajetória seriam – e precisariam ser urgentemente – a nossa.
Não temos outro corpo, assim como não temos outro planeta. Cabelos voltam a crescer depois de uma quimioterapia, as ruas secam depois que a água recua. Mas a lição precisa ser aprendida.
Agora estamos na etapa da lama que aparece quando a água começa a baixar. Lama e destruição. Lama e escombros, lama e desejo de recomeço. Como uma sobrevida. Limpar a lama é um processo elaborativo e sofrido. Ver os objetos pessoais em escombros transforma a ingenuidade em dor e a dor em revolta, porque essa doença poderia ter sido prevenida. Precisa transformar em mudança. Há que se limpar tudo. Limpar a lama, limpar a raiva, secar a mágoa. Para prevenir uma recidiva a responsabilidade é nossa, na escolha de nossos hábitos de vida, mas também de nossos médicos-governantes.
Por ora nos refugiemos no amor e na solidariedade que insiste em colocar a cabeça para fora d’água e dar oxigênio. Mas também é preciso pensar e cobrar. Cobrar e contar. A dor, os prejuízos, a história toda. O amor há de insistir.
Foto: Fredy Vieira – @fredyvieira | Divulgação
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