Em três das quatro cidades que oficialmente visitou de 28 de setembro a 9 de dezembro de 1929, período de sua primeira estada na América do Sul, Le Corbusier esteve em casas tidas como modernistas. Em Buenos Aires, a casa de Victoria Ocampo, uma das pessoas que o recepcionou, projetada pelo arquiteto Alejandro Bustillo (1889-1982); em Montevidéu, a casa do arquiteto Jose Pedro Sierra Morató (1899-1973), que conheceu em uma visita ao balneário de Carrasco, e a Casa do Bulevar Artigas, projetada por Carlos Gómez Gavazzo (1904-1987); e em São Paulo, a casa do arquiteto ucraniano Gregori Warchavchik (1896-1972), com quem conviveu nos dias que esteve na cidade. São quatro casas relacionadas com o surgimento da modernidade no continente.
Obviamente que tais casas ficavam aquém da produção realizada pelas vanguardas europeias da década de 1920, incluindo Le Corbusier. Na periferia, caso da América do Sul, onde o ensino de arquitetura seguia o academicismo orientado pela Escola de Belas Artes de Paris, o classicismo, o ecletismo historicista e as vertentes indigenista e neocolonial, surgidas da busca de uma linguagem própria, predominavam e eram vistas como modernas. Na segunda metade dos anos vinte, paulatinamente começaram a aparecer novas ideias modernizantes, da Europa e Estados Unidos. “Não ocorreu uma simples e cômoda repetição das ideias e princípios formulados em outras partes. As ideias viajam sem o seu contexto e ao penetrar em outras terras são modificadas pelas novas condições. Da mesma forma, a própria pergunta sobre a identidade ou a necessidade de encontrar uma expressão genuína que não seja uma ‘cópia’ do alheio impuseram às modernidades latino-americanas um selo próprio (CESIO, 2015, p. 23).
Naquele final de década de 1920, além das ideias propagadas pelo arquiteto franco-suíço, se disseminavam com uma velocidade impressionante as contribuições oferecidas pelo expressionismo alemão – de Erich Mendelsohn (1887-1953) e Hans Scharoun (1893-1972) – e holandês – de Jacobus Johannes Peter Oud (1890-1963) e Willem Marinus Dudok (1884-1974), entre outros -, e especialmente pela Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, ocorrida entre abril e outubro de 1925, em Paris.
Importante papel de difusão da arquitetura moderna no continente, tiveram as revistas de arquitetura. A bibliografia existente aponta a revista holandesa Wendingen [que circulou entre 1918-1932, de Hendrik Theodorus Wijdeveld (1885-1987), Amsterdã], e as revistas alemãs Die Forme [publicada entre 1922-1935, de Walter Curt Behrendt, depois substituído em 1926 por Walter Riezler, de Berlim] e Moderne bauformen [publicada entre 1902-1944, Julius Hoffmann Verlag, em Stuttgart], como as mais consumidas pelos arquitetos sul-americanos daquela época. Eram ávidos leitores ou observadores, que folhavam as páginas buscando explorar, em especial as imagens (fotos e plantas).
Le Corbusier, no contato com as obras seminais dos arquitetos pioneiros, teve a oportunidade de perceber os esforços empreendidos para abrir as portas à modernidade. Alguns destes pioneiros, eram europeus que estavam se radicando no novo mundo, enquanto a maioria eram jovens entusiasmados com a chegada do “espírito novo” por estas bandas.
Casa Sierra Morató em Carrasco, Montevidéu
Trata-se de uma residência de veraneio (1927-1928) projetada para a sua família, pelo arquiteto Jose Pedro Sierra Morató, em parceria com o colega Rodolfo Lucio Vigouroux (1896-?). A habitação unifamiliar situa-se à Avenida Juan Bautista Alberdi, nº 6.189, na Rivera al Norte, no bairro de Carrasco, urbanização nova quando o arquiteto franco-suíço esteve em Montevidéu (Figura 1).
Sierra Morató estudou na Faculdade de Arquitetura de Montevidéu (917-1925), período em que conheceu Vigouroux, que ingressou quando o curso de arquitetura fazia parte da Faculdade de Matemáticas (1914-1921). A criação da Faculdade de Arquitetura, desmembrada da Faculdade de Matemáticas, ocorreu em 1915. Destacava-se na modernização do ensino o professor francês Joseph Paul Adrien Carré (1870-1941), que havia sido contratado para tal finalidade, em 1907, pelo decano Eduardo García Zúñiga (1867-1951) (URES, s/d, p. 3, citando ARANA, GARABELLI & LIVNI, 2016).
“Em um pequeno país com uma única escola de arquitetura, as discussões sobre as ideias da arquitetura moderna se deram com base em um sólido ensino em belas artes que marcou inevitavelmente as primeiras gerações de profissionais. Paradoxalmente, boa parte da explicação da qualidade da arquitetura moderna uruguaia se deve ao fato de que aqueles que realizavam as obras, tinham recebido uma sistemática educação que os preparava para resolver funcionalmente os programas, realizar os mais finos detalhes e propor formas sumamente estudadas em seu equilíbrio proporcional.
Os intercâmbios com o exterior, através de viagens, revistas e livros, visitas, e o clima de abertura intelectual vigente no país, levaram a instalação das discussões sobre a modernidade e a tradição arquitetônica e a pergunta sobre como se deveria responder em nossas circunstâncias particulares. Todavia, em nenhum momento se abandonou a ideia de que o arquiteto era um artista e que sua tarefa, além de resolver funcional e tecnicamente cada encargo, era dotar o edifício de um caráter adequado. (…) No âmbito da forma e linguagem, aparecem claros experimentos modernos de vontade depuradora e evidente inspiração nas vanguardas artísticas embora a média do construído aposta por uma continuação das linguagens historicistas, pelo uso de decorações ‘modernas’ como o Art Déco ou ainda por combinações híbridas. No ensino, através de novos quadros docentes, se introduzem não só as configurações abstratas, depuradas e ‘funcionalistas’ da modernidade, mas inclusive novos modos de operar no processo de projeto, por exemplo mediante o uso de maquetes tridimensionais. Ainda assim, a disciplina acadêmica continuou sendo muito poderosa e os princípios clássicos de composição e caráter fundamentais à hora de projetar”. (CESIO, op. cit., p. 25 a 27)
O escritório Morató-Vigouroux participou dos primórdios da arquitetura moderna uruguaia, sendo a casa em tela uma das obras de destaque. Paralelamente à atividade profissional, Sierra Morató exerceu também a carreira docente, iniciada ainda quando estudante, em 1919, e que se estendeu até 1952. Foi professor na cátedra de Composição Decorativa. Também trabalhou com Vigouroux na Direção de Arquitetura do Ministério de Obras Públicas, onde realizou o projeto da Escola da Indústria da Construção (1937-1938), instituição da qual veio a ser diretor.
Le Corbusier esteve na cidade de 6 a 8 de novembro (de sexta-feira a domingo). Nesta estada, foi levado para conhecer a urbanização de Carrasco. Se deteve na casa Sierra Morató, que segundo consta, visitou e elogiou (GUTIÉRREZ et. Ali., p. 146). A manifestação ficou registrada por um professor de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura de Montevidéu: “Será a caneta de Leopoldo Carlos Artucio (1903-1976) que deixará registrado os elogiosos comentários do mestre suíço sobre a casa própria do arquiteto oriental” (URES, s/d, p. 2).
Jose Pedro Sierra Marató adquiriu o terreno em 1924, para construir uma casa de veraneio para a família. Em 1927, projetou-a com o seu colega Vigouroux, concluindo as obras no ano seguinte, quando retornou de uma bolsa de estudos na Europa. Na época, morava com sua esposa María Graciana Sierra Arrospide, na rua Magallanes, no centro de Montevidéu. Tiveram três filhas: Sylvia Luisa Sierra Garra, Nora Raquel Sierra Garra e Graciela Beatriz Sierra Garra.
A descrição da planta da casa (Figura 2) que segue é baseada em um texto gentilmente cedido pela atual proprietária, professora da Faculdade de Arquitetura de Montevidéu, Mariana Ures. As palavras em itálico são complementações feitas pelo autor deste texto, que visitou a casa em 17 de fevereiro de 2018. “No projeto original de dois pisos, se encontram em um espaço generoso e impactante (de mais de 7m x 7m de vão livre), o living-jantar no térreo, com lareira, que se comunica com a cozinha e banheiro através de um espaço coberto exterior. Debaixo da escada há uma passagem que também permite acessar a cozinha. No descanso da escada que vai para o piso superior se encontra o dormitório de serviço, a meia altura, e no pavimento superior um banheiro e um espaçoso quarto-atelier” (URES, op. cit., p. 8). Julio Gaeta e a equipe que organizou os seis volumes dos Guias Elarqa de Arquitectura, no seu volume 6, afirmam que a distribuição dos espaços nos dois níveis “se dá com uma claridade vinculada à tradição racionalista que se impôs nesses anos no nosso meio. Neste sentido, é destacável a amplitude dos ambientes e sua correta orientação solar, assim como a distinção entre uma área social no térreo e uma área íntima no piso superior (…)” (GAETA et alli, 1999, p. 46).
Com o nascimento de sua primogênita, em 1932, o arquiteto realiza a primeira reforma na habitação dividindo o pavimento superior, com uma parede de tijolo de vidro aparente desde um parapeito de 1,10m até o teto, diminuindo o tamanho do quarto-atelier. Tal necessidade acarretou sem sombra de dúvida, em perda para a espacialidade original da casa. O nascimento do resto da prole e a mudança definitiva da família para Carrasco, tornou-a uma habitação permanente, e exigiu uma nova intervenção. Em 1957, foi criado um volume explodido nos fundos da casa, que se apoia sobre um piloti, para nele alojar o terceiro dormitório do pavimento superior” (URES, op. cit., p. 8).
Sobre a edificação original, Gaeta e sua equipe salientam que o volume “simples e compacto, adota uma linguagem radicalmente moderna que se opõe ao caráter formalmente conservador de seu entorno imediato” (GAETA et ali, op. cit., p. 46). Observação importante, considerando as arquiteturas tradicionais que foram surgindo na medida que Carrasco foi sendo urbanizado.
Sierra Morató e Vigouroux se valeram de formas puras e definiram, na realidade, três volumes da composição: Um principal (voltado para a fachada frontal e lateral, incluindo a escada), outro de menor altura, que avança para a lateral da edificação, definindo os serviços (cozinha, banheiro e dormitório de serviço) e um terceiro que corresponde ao acréscimo feito em 1932. No volume principal encontra-se, quase ao nível do piso superior, o balcão curvilíneo envolvendo a metade da fachada principal e a fachada lateral, com cerca de dois metros de balanço. Gaeta diz que a composição se vale especialmente do efeito plástico da curva que, reafirmado pelo tratamento superficial da parede e a posição dos vãos, sugere a posição lateral do acesso” (Idem). Ures observou que a licença para a construção, datada de 1928 indica a utilização de reboco a base de cal, técnica e materialidade que se retoma ao longo do tempo. (URES, op. cit., p. 13).
No que diz respeito à Casa Sierra Morató, Ures afirma que “Não é difícil encontrar uma familiaridade com o volume explodido que projeta Walter Gropius (1883-1969) para a sua casa em Dessau de 1927. Diz ela que, inclusive, “se observa a janelinha vertical de proporções alargadas que se apresenta em ambas as fachadas situada sobre o lado direito” (Idem, p. 10). Aliás, ela afirma existir “afinidades formais na resolução de obras de arquitetura de Oud, Dudok, Le Corbusier, Gropius e outros arquitetos menos conhecidos, e alguns traços da casa de Sierra Morató em Carrasco. (Ibidem). Não esquece que, foi criada uma cinta de tijolos que envolve o piso térreo, na altura das janelas, desde o acesso principal, passando pela fachada fronteira, pela lateral e terminando na fachada posterior, junto ao acesso para a cozinha e banheiro, que também dá para o pátio (ver Figuras 1 e 3). Lembra que a “utilização do tijolo como recurso estético mais que construtivo”, aparecia nos referenciais expressionistas, citando como exemplo a casa do Dr. Fischer (1926-1927), em Wuppertal, Alemanha (Figura 4), projetada por Hans Heinz Lüttgen, além de Wright, ou Dudok” (Ibidem). Outro elemento importante a destacar é a janela de forma circular existente na parede na altura do patamar de descanso da escada. Associada com o balcão, dão à edificação formas náuticas, muito difundidas naquele momento, especialmente em regiões de balneários, como foi o caso de Carrasco. Tais formas associam-se desde o Art Déco até o discurso da máquina de morar de Le Corbusier.
Mariana Ures mostra através de imagens as afinidades formais entre a escada da casa (Figura 5) com a concebida uma década antes por Jacob Johannes Peter Oud, na Casa de Veraneio De Vonk (1917-1918), situada em Noordwijkerhout, na Holanda (Figura 6).
Gaeta e equipe escreveram que o design das luminárias, a incorporação de esculturas murais do artista plástico uruguaio Antonio Pena (1894-1947) e as numerosas pinturas realizadas por integrantes do atelier de Joaquín Torres García (1874-1949), que outrora podiam ser apreciadas no interior da casa, “revelam uma vocação estética integral” e “confirmam a filiação doutrinária do autor e seus vínculos com a vanguarda artística do momento” (GAETA, op. cit., p. 46).
A integração das artes comparece na casa através da intervenção artística realizada pelo escultor Antonio Pena também docente da Escola da Construção, profissional que em outras oportunidades trabalhou naquele período com vários arquitetos. Para a casa Sierra Morató, Pena realizou dois baixos-relevos. Um junto da porta de entrada, no lado externo, e outro, junto da lareira, no living (Figura 7). Fez também uma fonte no jardim.
Mariana Ures salienta ainda que “Tanto a ferragem das portas principais como as luminárias, falam uma linguagem associada ao Art Déco, provavelmente esta impressão venha dada pela força da Exposição Internacional de Artes Decorativas de Paris, de 1925” (URES, op. cit., p. 14).
Pelo exposto, é possível concluir que Le Corbusier, no curto período que esteve em Montevidéu, se sentiu contagiado pelo ânimo dos professores e dos arquitetos uruguaios, especialmente dos jovens em receber as novas ideias emanadas do velho continente. A recepção e a atenção oferecida pelos orientais, além das visitas efetuadas nas obras que vinham sendo concluídas ou em andamento, visando inclusive a atender a realização do 1º Campeonato Mundial de Futebol, realizado em Montevidéu, em 1930, comoveu o arquiteto franco-suíço, embora tivessem mais relação, como foi visto, com as arquiteturas Art Déco e Expressionista. Percebeu que naquele momento, os montevideanos estavam mais permeáveis que seus vizinhos portenhos em aceitar os novos ventos que sopravam no Rio da Prata. A bibliografia existente sobre o assunto confirma esta imediata adesão proporcionada pela Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, pelas publicações que chegavam e pelas ideias e produção de Le Corbusier. Assim, arquitetura renovadora foi fértil e pujante na margem oriental do rio, variada se consideramos as diferentes procedências dos seus referenciais, didaticamente explorado por Mariano Arana e Lorenzo Garabelli no livro Arquitetura Renovadora em Montevidéu 1915-1940: Reflexiones sobre un período fecundo de la arquitectura en el Uruguay.
Bibliografia:
ARANA, Mariano & Garabelli, Lorenzo. Arquitetura Renovadora en Montevidéu 1915-1940: Reflexiones sobre un período fecundo de la arquitectura en el Uruguay. Montevidéu: Fundacion de Cultura Universitaria, 1991.
ARANA, Mariano, GARABELLI, Lorenzo & LIVNI, José Luis. Entrevistas. Edição especial. Montevidéu: Instituto de História da Arquitetura – Faculdade de Arquitetura, Design e Urbanismo – Udelar, número 14 (entrevista com Juan Antonio Scasso), 2016.
CESIO, Laura (Coord.). Modernos. Montevidéu: Instituto de Historia de la Arquitectura – Facultad de Arquitectura – UdelaR / Comisión de Patrimonio Cultural de la Nación (CPCN) – MEC, 2015. Disponível em https://issuu.com/iha.fadu/docs/modernos-set-2015
GAETA, Julio; FOLLE, Eduardo; ALEMÁN, Laura & BENEVICIUS, Maia. Guias Elarqa de Arquitectura: Carrasco / Punta Gorda. Montevidéu: Editorial Dos Puntos, Tomo VI, 1999.
URES, Mariana. Sierra Morató: Un ejercicio de historia. Montevidéu: Instituto de Historia de la Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo – Udelar; in: Temas y problemas de la Arquitectura Nacional Mery Méndez, s/d.