No prédio 32 do Campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), nos corredores do quarto pavimento, encontra-se uma cópia da exposição intitulada “Le Corbusier en el Río de la Plata, 1929” (Buenos Aires, Montevidéu e Assunção), fruto do acordo entre o CEDODAL (Centro de Documentação da Arquitetura Latino-americana), com sede em Buenos Aires, o Ministério da Educação e Cultura do Uruguai e a Faculdade de Arquitetura da Universidade da República, de Montevidéu, que deu origem ao CEDODAL-Uruguay e ao Centro de Investigações de Arquitetura do Século XX na América Latina “Julio Viamajó”.
Em 2009, além da exposição, foi produzido um catálogo, um CD, e um filme realizado por Miguel Rodríguez Arias, resultantes da vasta pesquisa que envolveu arquivos públicos e privados uruguaios e argentinos, além de documentação existente na Fundação Le Corbusier, em Paris.
Charles-Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965), que adotou o pseudônimo de Le Corbusier, em 1920, foi um dos mais importantes arquitetos do século XX. Nasceu em La Chaux-de-Fonds, no Jura, região de produção relojoeira do cantão francês da Suíça, onde fez seus estudos na Escola de Artes e Ofícios, a partir dos seus quinze anos de idade, tendo sido orientado pelo professor Charles L’Eplattenier (1874-1946). Interessou-se pela arquitetura, projetando aos dezessete anos e meio, a Villa Fallet (1905-1906), para o joalheiro Louis Fallet, sob a supervisão do arquiteto e professor René Chappallaz (1881-1976). Entre 1908 e 1916, projetou e construiu outras casas na mesma cidade.
Autodidata, desde a primeira década do século XX, Le Corbusier deu início a sua formação realizando viagens – dentre elas a que resultou no livro “Viagem ao Oriente” (ocorrida em 1911 e publicada em 1913), na qual teve a companhia do amigo Auguste Klipstein (1885-1951) -, estágios e estudos com alguns dos profissionais mais importantes do período: conheceu Tony Garnier (1869-1948), em 1907; estagiou com o francês Auguste Perret (1874-1954), por vinte meses (março de 1908 a novembro de 1909), este último, despertando-lhe o interesse em se aprofundar na técnica do concreto armado e no racionalismo estrutural, com o qual desenvolveria, em 1914, com o engenheiro Max Dubois a “Casa Dominó”; trabalhou com o alemão Peter Behrens (1868-1940), por cinco anos (1910-1915) – onde também exerceram o ofício Walter Gropius (1883-1969) e Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) -; esteve ainda com Heinrich Tessenov (1876-1950). Fortemente influenciado pelo classicismo, abandonaria o Heimatstil, de origem germânica, e o Style Sapin, variante suíça do Jugendstil de inspiração medieval, praticado em sua terra natal e que o encantou inicialmente.
Mudou-se definitivamente para Paris, em fevereiro de 1917, quando tinha 29 anos de idade. Na capital francesa, desenvolveu o “Purismo”, com o artista plástico Amédée Ozenfant (1886-1966), cujos fundamentos estéticos foram reunidos num manifesto publicado em 1918, com o título de Après Le Cubisme (Após o Cubismo). Defendiam o uso de formas e cores primárias. Com Ozenfant e com o escritor belga Paul Dermée (1886-1951), criaram a Revista L’Esprit Nouveau (O Espírito Novo), publicada entre 1920 e 1925, de grande repercussão no meio das artes e da arquitetura, tratando da relação entre arte e sociedade industrial. Em 1922, o arquiteto franco-suíço inaugurou o seu atelier no número 35, da Rue de Sèvres, na capital francesa, endereço que se tornaria referencial para os arquitetos do mundo todo.
No ano seguinte, Le Corbusier publicou um de seus mais importantes trabalhos, o livro-manifesto intitulado Vers une architecture (Por uma arquitetura), no qual reuniu o conjunto de ensaios publicados na revista L’Esprit Nouveau, tratando especialmente da transformação da antiga casa em uma máquina de morar. Dois anos depois apresentou o seu Pavilhão do Espírito Novo (1925), na Exposição de Artes Decorativas e Industriais Modernas, ocorrida em Paris, entre abril e outubro. Na ocasião, na área do urbanismo, apresentou o impactante e polêmico Plan Voisin (1925), financiado por Gabriel Voisin (1880-1973), fabricante de aviões e carros de luxo, tratava-se de uma adaptação para a capital francesa do projeto de uma cidade para três milhões de habitantes, desenvolvido três anos antes, e publicou o livro Le Urbanisme (O Urbanismo), reunindo suas ideias.
Ao longo da década de 1920, tornou-se conhecido pela série de casas brancas nas quais desenvolveu seus conceitos sobre a arquitetura, em especial as Casas Citroën (1920-1927), as Villas La Roche-Jeanneret (1923-1925), no cul-de-sac conhecido como Parque do Docteur Blanche, números 8 e 10, em Paris, a Villa Stein de Monzie (1926-1929), no número 17 da Rue du Prof. Victor-Pauchet, em Garches, as Casas Geminada de números 14 e 15 (1927) e a Casa Unifamiliar (1927), ambas em Weissenhofsiedlung, em Stuttgart, e a famosa Ville Savoye (1929-1931), situada no número 82, da Rue de Villiers, em Poissy-sur-Seine, na França. Formulou nessas obras as suas ideias sobre as quatro composições arquitetônicas, a exploração dos traçados reguladores (meio geométrico ou aritmético que permite dar precisão às proporções de uma composição plástica) e os chamados “cinco pontos” (enunciados em 1926) que adotara em suas edificações: o uso de pilotis (pilares / colunas), no térreo, liberando ao máximo o nível do solo, e permitindo liberar a planta nos níveis superiores (afinal, a estrutura proporcionava a independência da planta, liberando o agenciamento da mesma), o que proporcionava também a utilização de janelas longilíneas (horizontais), uma vez que dispensava o uso de paredes portantes, gerando a possibilidade da fachada livre. Sobre a edificação, não mais o telhado tradicional. Le Corbusier propôs o terraço-jardim. Suas ideias o tornaram conhecido internacionalmente, o que fez com que passasse a receber demandas do exterior.
Em 1923, Paris recebeu um significativo número de modernistas brasileiros: Anita Malfatti (1889-1964), Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), Heitor Villa Lobos (1887-1959), Oswald de Andrade (1890-1954), Sérgio Milliet (1898-1966), Tarsila do Amaral (1886-1973) e Victor Brecheret (1894-1955). Neste período, também Paulo Prado (1869-1943), primogênito de Antônio da Silva Prado (1840-1929), o mecenas da Semana de Arte Moderna, costumava passar o verão na capital francesa. O agitado ambiente intelectual estimulou os brasileiros a consolidar e ampliar as relações ilustres (CALIL, 2021). Surgiu daí a simpatia deles por Blaise Cendrars, pseudônimo de Frédéric Louis Sauser (1887-1961), romancista e poeta franco-suíço, conterrâneo de Le Corbusier, também radicado em Paris, em 1923, que já antes da Semana de Arte Moderna atraía o interesse de alguns dos poetas modernistas brasileiros. Foi estudado por Mário de Andrade (1893-1945), Manuel Bandeira (1886-1968), Luiz Aranha (1901-1987) e Oswald de Andrade. Em maio de 1923, Oswald foi ao encontro de Cendrars, em Paris (AMARAL, 1997, p. 15). No mês seguinte, Tarsila ofereceu um almoço brasileiro a ele, no seu atelier da Place Clichy. Teve início a um relacionamento profissional, que influenciou a fase fundamental de definição da pintura de Tarsila do Amaral, influenciada por Fernand Léger (1881-1955), Albert Gleizes (1881-1953) e André Lhote (1885-1962), seus mestres, resultando na exposição ocorrida na Galeria Percier, que a tornou reconhecida. Cendrars impediu que a mesma ocorresse no salão da Embaixada por entender que o principal problema dos artistas brasileiros era o oficialismo (CALIL, op. Cit.).
Oswald apresentou Cendrars a Paulo Prado, que através de Sérgio Milliet convidou-o a vir pela primeira vez ao Brasil (AMARAL, 1997, p. 105). O escritor partiu para o Brasil em 12 de janeiro de 1924, do porto de Havre, no navio Formose. Em São Paulo, recebido por Paulo Prado, foi instalado no Hotel Victoria, no Largo do Paissandu. Esteve no carnaval do Rio de Janeiro e visitou com Tarsila e Oswald de Andrade as cidades históricas mineiras. Cendrars foi mediador da descoberta do Brasil pelos brasileiros, que aí encontraram matéria prima de arte e literatura (por exemplo, acompanharia a composição dos poemas de Pau Brasil, e é visível na produção de Tarsila a influência desta experiência no interior do país, especialmente na segunda metade daquela década) e do relacionamento dos nossos modernistas com a vanguarda francesa. Graças ao convívio com Paulo Prado, Cendrars tinha noção clara do que era o Brasil. Familiarizou-se com a nossa história e literatura, chegando a ler, no original, Os sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), Retrato do Brasil, de Paulo Prado e Macunaíma, de Mário de Andrade (CALIL, op. Cit.). Visitou o Brasil em várias ocasiões. Sua relação com o país, sobre o qual escreveu vários textos e livros, foi estudada inicialmente através de Alexandre Eulalio (1932-1988), que publicou em francês L’Aventure Brésilienne de Blaise Cendrars (1969), e em seguida por Aracy Amaral (1930), Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas (1970).
Le Corbusier esteve presente no almoço oferecido por Tarsila, no seu atelier, estimulada pelo Embaixador de Brasil na França (no período 1922-1944), Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954). Deste evento resultou o conhecido esquiço do rosto do arquiteto franco-suíço feito por Di Cavalcanti.
No Centenário da Independência do Brasil, no dia 7 de setembro de 1922, o então Presidente da República, Epitácio Pessoa (1865-1942), lançou a pedra fundamental da futura capital do país, em Planaltina. Le Corbusier vai se interessar pelo projeto. Em 1926, Fernand Léger e Blaise Cendrars sugerem a Paulo Prado que indique Le Corbusier para projetar a nova capital do Brasil. No ano seguinte, o arquiteto manifesta a Paulo Prado o seu interesse pelo projeto. Não havendo interesse em levar adiante o assunto, por parte das autoridades brasileiras, Brasília só sairia do papel na segunda metade da década de 1950.
Em 1924, um grupo de pessoas que integravam a elite cultural portenha formaram a Associação dos Amigos da Arte, que tinha como objetivo gerar recursos para promover atividades em distintas áreas das artes, priorizando as relações com a cultura francesa. Foi essa entidade que convidou Le Corbusier, através da “Sociedade de Conferências” (criada em 1925) para vir à Argentina (GUTIÉRREZ, 2009, p. 23). O convite formal foi feito em meados de 1928, pelo pintor e historiador argentino Alfredo González Garaño (1886-1969), que conheceu o arquiteto na casa da Duquesa Dato, em Paris. Posteriormente a “Sociedade de Conferências” da Associação dos Amigos da Arte, através de telegrama enviado pela senhora Elena Sansinena de Elizalde (1883-1970), ratificou a contratação de Le Corbusier para proferir palestras em Buenos Aires. Ao aceitar o convite, o arquiteto franco-suíço escreve ao seu compatriota Cendrars para fazer gestões para estender sua viagem ao Brasil, pois estava interessado na nova capital. Le Corbusier escreve então a Paulo Prado, em 28 de julho de 1929, dizendo que receberia seis mil francos por cada uma das dez conferências que realizaria em Buenos Aires, além do pagamento de suas despesas de viagem. Disse que levaria um lote de fotografias de seus trabalhos para fazer uma exposição e que gostaria de ir a São Paulo e ao Rio de Janeiro, “se as condições fossem compensadoras”. Foi então convidado pelo Círculo Politécnico de São Paulo, tendo Paulo Prado conseguido um cachê de dez mil francos por uma conferência. Para ir a Montevidéu, estando em Buenos Aires, e sendo convidado a proferir palestras na capital uruguaia, Victoria Ocampo (1890-1979), pela “Sociedade de Conferências”, conseguiu viabilizá-las por oitocentos francos cada.
Dias depois de confirmada a sua viagem, o arquiteto recebeu uma demanda, o projeto de uma residência para Victoria Ocampo. A escritora argentina tinha contratado Alejandro Bustillo (1889-1982) para projetar a casa que deveria ter sido iniciada em primeiro de outubro de 1928. Não satisfeita com o projeto, comentou com sua amiga argentina, María Adela de Atucha Lavallol (1887-1970), casada com Carlos Caro i Potestad (1881-1973), Conde Cuevas de Vera, que se propôs a interceder para que Le Corbusier realizasse um novo projeto. Adela teria conhecido o arquiteto em maio, quando este realizou uma palestra em Madri (GARDINETTI, 2021). Ocampo aceitou a colaboração da amiga, mas propôs outro terreno, à Rua Salguero, para não se sobrepor ao projeto solicitado a Bustillo, à Rua Rufino de Elizalde. Em 9 de agosto, Adela propôs a Le Corbusier um encontro, que não ocorreu. A condessa escreveu novamente em 27 de agosto, de sua casa em Anglet (nos Baixos Pirineus), anexando quatro esquemas que Ocampo a tinha enviado, com várias observações sobre o programa, descartando o uso de janelas horizontais longilíneas. Adela volta a escrever em 6 de setembro, solicitando um primeiro estudo. Le Corbusier estava com uma grande demanda de trabalhos o que fez com que demonstrasse pouco interesse pela casa para Ocampo, fazendo adaptações na Villa Meyer (1926). Le Corbusier enviou a Victoria Ocampo um dossier com as quatro plantas e três croquis, dois dos interiores da casa e outro visto desde o jardim (IDEM, 2021). Propositadamente não enviou a fachada pois não aceitava a ideia de abandonar a ideia de janelas longilíneas. Nem sequer se preocupou em enviar seus honorários. Não havendo solução de continuidade, Ocampo realizaria a casa projetada por Bustillo.
Na verdade, Le Corbusier estava envolvido com várias demandas, a principal dizia respeito ao projeto para a Sociedade das Nações, em Genebra, na Suíça, fruto do concurso internacional que ganhara em 1927, mas que lhe gerou uma forte decepção com o encaminhamento dado pela entidade, postergando a sua continuidade (GUTIÉRREZ, 2009, p. 21). Também andava às voltas com os CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). Participou da Fundação, no Castelo de La Sarraz, na Suíça (janeiro de 1928). Proferiu palestras, em Madri (maio de 1928) e em Praga (setembro de 1928) (IDEM, 2009, p. 21). Pouco antes de vir à América do Sul, viajou a Moscou, onde concretizou a construção do Palácio do Centrosoyuz (projeto entregue em julho de 1929). Sem contar que naquele ano de 1929, resolveu publicar a edição do primeiro volume de suas obras, por Willy Boesiger (1904-1990). Isto explica a aparente desatenção para com o projeto de Ocampo.
Sua vinda se deu neste momento de importantes transformações na sua trajetória profissional. Le Corbusier tinha esperança de realizar novos negócios, especialmente na Argentina.
No sábado, 14 de setembro de 1929, Le Corbusier partiu de Bordeaux, rumo ao Rio da Prata, no vapor Marselha, onde chegaria em 28 de setembro, também em um sábado, com escala em Montevidéu. Iniciava a sua primeira visita ao continente.
NOTAS:
AMARAL, Aracy. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: Ed. 34 / Fapesp, 1997.
CALIL, Carlos Augusto. Quem foi Blaise Cendrars, franco-suíço que se encantou por Aleijadinho e influenciou Oswald e Tarsila – 23/01/2021 – Ilustríssima – Folha de São Paulo (uol.com.br).
GARDINETTI, Marcelo. Le Corbusier, Villa Ocampo. Tecnne 19-02-2021 https://tecnne.com/arquitectura/le-corbusier-villa-ocampo/
GUTIÉRREZ, Ramón. Le Corbusier en Buenos Aires. Nuevas lecturas sobre el viaje de 1929. In: GUTIÉRREZ, Ramón et alii. Le Corbusier en el Río de La Plata, 1929. Buenos Aires: CEDODAL; Montevidéu: Facultad de Arquitectura – UDELAR, 2009.
*Texto originalmente publicado aqui em 30 de setembro de 2022