Alejandro Lapunzina, argentino, professor da Escola de Arquitetura de Illinois, em Urbana-Champaign, diz que como se precisasse de um estímulo adicional, em Paris, Blaise Cendrars, conterrâneo e amigo de Le Corbusier, o animava a visitar a América do Sul apresentando-a como um território fértil para a aplicação de suas ideias. Cendrars tinha vindo ao Brasil em 1924. “Em simétrica contrapartida, no sul da América os escritos de Le Corbusier eram recebidos com enorme interesse e entusiasmo. A tal ponto, que o arquiteto parisiense não tardou em ser algo mais que uma das vozes mais importantes que desde a Europa propagavam os princípios da nova arquitetura, e inclusive se converteu no referencial mais influente, sinônimo por excelência da arquitetura moderna” (LAPUNZINA, 2018, p. 56).
Diz o mesmo autor que “O encontro entre Le Corbusier e o continente americano era então previsível e muito prometedor e, de fato, não tardou em materializar-se, primeiro a partir de relações que o arquiteto estabeleceu em Paris com membros das elites sociais e culturais da América que frequentavam a capital francesa e, mais tarde, através de numerosas viagens (…) ao outro lado do Atlântico” (Idem).
A primeira demanda ocorreu antes da sua primeira viagem ao continente, quando em 1928, elaborou um projeto de casa a ser edificada na Calle Salguero, em Buenos Aires, para a escritora, editora e intelectual argentina Ramona Victoria Epifania Rufina Ocampo, conhecida como Victoria Ocampo (1890-1979), projeto que não teve andamento pelo fato da cliente não aceitar a ideia da janela horizontal e de decidir construir outra casa, na Calle Rufino de Elizalde, no Bairro de Palermo, assinada pelo arquiteto Alejandro Bustillo (1889-1982).
A oportunidade se materializou com o convite que o arquiteto recebeu da Associação Amigos da Arte de Buenos Aires, em 1929. Le Corbusier saiu de Bordeaux no vapor Marsiglia, rumo à capital portenha, num sábado, 14 de setembro. Catorze dias depois, noutro sábado, chegou ao Rio da Prata, com escala no porto de Montevidéu, seguindo em seguida para Buenos Aires onde aportou à noite. Foi o início da primeira viagem do arquiteto franco-suíço ao continente, que se deu de 28 de setembro a 9 de dezembro. Permaneceu na América do Sul por 72 dias. Na capital argentina foi acompanhado pelas senhoras Victoria Ocampo, que desde a criação da entidade anfitriã, em 1924, era membro da Comissão Diretiva e da Sociedade de Conferências (cargo que ocupou de 1925 a 1929), e Maria Rosa Lucía Oliver Romero (1898-1977), intelectual ligada à política e à arte, que integrava desde 1928 a Comissão Diretiva da Associação Amigos da Arte (GUTIÉRREZ & RADOVANOVIC, 2009, p. 144). Também o acompanhou Enrique Bullrich (1903-1957), crítico musical, parente de Victoria Ocampo (Idem, p. 140). Em Buenos Aires, a intenção de Le Corbusier era mais do que realizar as conferências para as quais havia combinado. Desejava organizar negócios com Antonio Ubaldo Vilar (1887-1966), engenheiro civil, e Julio Rinaldini (1890-1968), crítico de arte, periodista e ensaísta (Ibidem, p. 145 e 146).
Na exposição elaborada em 2009, pelo CEDODAL de Buenos Aires com a Faculdade de Arquitetura da Universidade da República, de Montevidéu, sob a liderança do professor argentino Ramón Gutiérrez, disponível no quarto andar do prédio 32, no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, consta que, desde que foi convidado, “Le Corbusier esperou em suas conferências um público diverso: intelectuais, estudantes de arquitetura, arquitetos europeus emigrados para a Argentina, artistas e críticos”.
Na quinta-feira, dia 3 de outubro, na sede da Associação dos Amigos da Arte, Le Corbusier realizou a sua primeira palestra, intitulada “Liberar-se de todo o espírito acadêmico”, noticiada no dia seguinte no jornal La Nación. Dois dias depois, no sábado, no mesmo local, proferiu a sua segunda conferência: “As técnicas são os fundamentos do lirismo. Abrem um novo século de arquitetura” (Gutiérrez et ali, 2009, p. 137).
No dia 8, terça-feira, realizou a terceira preleção, “Arquitetura em tudo, urbanismo em tudo”, na Escola de Arquitetura da Faculdade de Ciências Exatas, Físicas e Naturais da Universidade de Buenos Aires, a convite do decano, Enrique Butty (1887-1973), onde realizaria dois dias depois, outra palestra sob o título de “Uma célula à escala humana” (Idem). Durante a estada de Le Corbusier em Buenos Aires, Butty gentilmente designou três professores da instituição para acompanhá-lo: os arquitetos Alberto Coni Molina (1883-1962), Ezequiel Real de Arzúa (1884-s/d) e Raúl Jacinto Álvarez (1890-1974).
Alfredo González Garaño (1886-1969), artista plástico, membro da Associação Amigos da Arte, encarregado de convidar Le Corbusier em nome da entidade, e que também o acompanhou na sua estadia em Buenos Aires, estava surpreso pela quantidade de público na faculdade.
A quinta conferência ocorreria na sexta-feira, dia 11 de outubro, na Associação dos Amigos da Arte, quando arquiteto franco-suíço tratou do tema “O Projeto da casa moderna” (Ibidem). No dia seguinte, acompanhado de González Garaño, viajou a San Antonio de Areco para a inauguração de um monumento ao romancista e poeta Ricardo Güiraldes (1886-1927), feito pelo escultor Agustín Riganelli (1890-1949), cujo avô materno, Ruiz de Arellano, fundou a localidade, em 1730. Na oportunidade, Le Corbusier presenciou um desfile de gaúchos pilchados.
Na segunda-feira, dia 14, realizou a sexta palestra, agora para a entidade Amigos da Cidade, no jockey Club de Buenos Aires, abordando o tema “Um homem uma célula, umas células: a cidade”. No dia seguinte, no sétimo evento, abordou o tema “Uma casa um palácio”, novamente na Escola de Arquitetura da Faculdade de Ciências Exatas, Físicas e Naturais da Universidade de Buenos Aires. Neste dia 15 de outubro, esteve com Matías Errázuriz Ortúzar (1868-1953), que foi embaixador do Chile em Buenos Aires (Ibidem).
A oitava conferência, intitulada “A cidade mundial”, voltaria a ocorrer na Escola de Arquitetura da Faculdade de Ciências Exatas, Físicas e Naturais da Universidade de Buenos Aires, na quinta-feira, dia 17 de outubro. Na sexta-feira, dia 18, ocorreria a nona apresentação de Le Corbusier, na sede da Associação dos Amigos da Arte. Encerraria seu ciclo de conferências no sábado, dia 19, no mesmo local da apresentação anterior, abordando o tema “A aventura do mobiliário”. Na segunda-feira, por carta, agradeceu às instituições que patrocinaram suas dez conferências (Ibidem). Cumpria oficialmente a sua agenda na Argentina.
Nos painéis da exposição, consta que Le Corbusier foi cortante nas conferências realizadas na Escola de Arquitetura. Teria dito: “Os professores, perfeitamente idiotas” os estudantes, “um pouco melhores”. É mostrado também que “sem contatos com a Sociedade de Arquitetos e acompanhado por colegas academicistas, Le Corbusier se refugiou nos seus anfitriões e começou a esboçar suas ideias para Buenos Aires. O panorama não era fácil. A mensagem de Le Corbusier ia, sem dúvidas, revolucionar o ambiente e se tinha a simpatia de seus anfitriões, muitos deles eram academicistas, conservadores, hispanistas ou inclusive indigenistas. Dos arquitetos podiam esperar pouco, o gratificaram com o silêncio institucional”. A intenção de Le Corbusier era também de realizar negócios. Para tanto, apostaria em Alfredo González Garaño, Victoria Ocampo, Enrique Bullrich e María Rosa Oliver, como gestores, e em Antonio Vilar, como executivo.
Nas manifestações, Le Corbusier fez um duplo discurso sobre a cidade. Aos seus amigos lhes enfatizava as grandes possibilidades de Buenos Aires se consolidar como a capital do hemisfério sul do planeta, dentro de uma visão globalizante, em outros textos falava da “cidade sem esperança”. Seu grande projeto, como se vê na exposição, se relacionava com o planejamento da cidade. Na sua biblioteca tinha o Plano Noel (1925) e tomou contato com as transformações que estavam ocorrendo como as costaneiras (bordas do Rio da Prata em Buenos Aires), o novo porto da cidade e os jardins franceses de Jules Charles Thays (1849-1934), situados no bairro de Palermo.
Valendo-se da sua enorme capacidade de agradar a seus interlocutores, Le Corbusier batizou Buenos Aires como a capital do hemisfério sul. Rapidamente compreendeu que seu grande projeto para a Argentina seria o Plano Regulador da cidade. “Pondera as condições da horizontalidade, mas defende concentrar a cidade, ainda que criando novos núcleos. Valoriza a ampliação de avenidas e os espaços verdes, mas critica o quarteirão fechado, o traçado xadrez e a rua corredor tradicional” (ver o painel 12 da exposição). Toma contato com as novidades da cidade, concretizadas na Costaneira Sul e conhece os planos “Regulador e de Reforma da Cidade”, conhecido como Noel (1923-1925), na administração do intendente Carlos Martín Noel (1886-1941), e Carlos María Della Paolera (1890-1960), de 1932, com quem esteve em 1929, mas procurará trasladar seus próprios enunciados do Plan Voisin para Paris (1925).
Dizem os autores da exposição que a arquitetura de Buenos Aires foi o primeiro cenário da crítica de Le Corbusier. Na capital portenha predominava o academicismo, o ecleticismo e os historicismos, “que o levaram (se referindo a Le Corbusier) a destacar até as arquiteturas do período colonial e posteriormente, a resgatar valores da casa de pátio”. Seus principais alvos foram o então prédio da Faculdade de Direito, hoje de Engenharia (1909), do uruguaio naturalizado argentino Arturo Prins (1877-1939), na Avenida Las Heras, no bairro da Recoleta, pelo seu estilo neogótico, pelo seu custo e caráter; a Avenida de Mayo (1888-1894), haussmaniana; e o Palácio Barolo (1919-1923), na mesma avenida, projetado pelo milanês Mario Palanti (1885-1978), o qual chamou de “pastelaria italiana” com “salsicharia” decorativa.
A casa mais moderna que o arquiteto parisiense visitou em Buenos Aires, foi a Casa de Victoria Ocampo, na Calle Rufino de Elizalde. Apesar de estar mais identificada com a produção de Adolf Loos (1870-1933), era o que de melhor a cidade oferecia.
Le Corbusier tinha a intenção de interferir na paisagem urbana de Buenos Aires, para tanto, após suas primeiras conferências, propôs a “Cidade de Negócios”, sobre o Rio da Prata. Tratava-se de uma plataforma-ilha adjacente ao centro da cidade, que conteria inicialmente doze edifícios cruciformes, similares aos que concebera quatro anos antes no Plan Voisin de Paris.
Também pensou na realização de um Museu em Palermo, inspirado no Museu mundial do Mundeaneum. Em 1931, enviou a Rinaldini um esquema de localização do museu, na borda do Rio da Prata, ideia que nunca saiu do papel.
Na sua estada na capital portenha, Le Corbusier esboçou espontaneamente dois empreendimentos imobiliário-arquitetônicos que propôs à Victoria Ocampo: um O “Rascacielito” (pequeno edifício em altura), frente ao Rio da Prata, e um complexo residencial “próximo do golf” (LAPUNZINA, 2018, p. 56), no Tigre, composto de uma série de clones da Villa Savoye, que então estava concluindo, nos arredores de Paris. As duas propostas não foram levadas adiante.
Entre 22 e 24 de outubro, Le Corbusier aproveita a oportunidade para ir de avião a Assunção, no Paraguai, numa viagem inesperada. Fica surpreso com a relação entre natureza e arquitetura ao ver o território do Pampa e o Rio Paraná. O encantou também a periferia de Assunção, onde elaborou alguns croquis. A partir desta experiência, formula então a “lei dos meandros” e busca a articulação entre território e assentamentos.
De volta a Buenos Aires, viajou na noite do dia 25, uma sexta-feira, de trem, com Antonio Vilar para Mar del Plata, onde visitou a casa de Victoria Ocampo. No dia seguinte foi à estância da família Bullrich. Na segunda-feira, tratou de negócios com Henry Walton da Fondations Co., de Nova Iorque, para financiar seus projetos e organizou o esquema da sociedade com Antonio Vilar. Visando concretizar vários projetos para a capital portenha, fundou a sociedade de “Grandes Trabalhos de Buenos Aires” com Vilar e insistiu ante seus amigos para que se organizassem em Comitê Cívico para apoiar o Plano de Buenos Aires. No painel 11 da exposição, os autores afirmam que “(…) na sua partida, seu sócio cala e seus anfitriões seguem falando de conferências. A frustração de Le Corbusier é total, nem sequer Victoria Ocampo atende suas chamadas e pelo contrário – demonstrando não ser problema de dinheiro solicita seus projetos a outro.”
Seu último compromisso de trabalho em Buenos Aires acaba se dando no dia 31, quinta-feira, quando foi ao encontro do senhor Matías Errázuriz Ortúzar para assinar o contrato para projetar uma casa a ser realizada em Zapallar, no litoral chileno, trabalho que desenvolveria, em 1931, em Paris.
No dia 5 de novembro, numa reunião extraordinária do Conselho Diretivo da Faculdade de Arquitetura de Montevidéu, é formalizado o convite para Le Corbusier para realizar duas conferências na instituição, após o exitoso contato feito com o arquiteto franco-suíço, através do arquiteto Carlos Herrera Mac Lean (1879-1971). A sugestão inicial de convidá-lo quando soube que estava em Buenos Aires, partiu de Mauricio Cravotto (1893-1962), convidado para apresentá-lo na conferência inicial.
Le Corbusier se desloca para Montevidéu de avião, aterrissando no Aeródromo de Melilla, situado a quinze quilômetros a noroeste da cidade. No painel 14 da exposição é dito que “Se terminava seu ciclo em Buenos Aires com as críticas de Alejandro Bustillo e Ángel Guido (1896-1960), em Montevidéu era recebido entusiasticamente pelos arquitetos jovens e os estudantes que o acompanharam em seus itinerários urbanos”. Passeou pela cidade e o porto com seus colegas uruguaios, se identificando especialmente com os arquitetos que estavam implementando a arquitetura renovadora da cidade.
Do ecletismo predominante na paisagem montevideana, chamou-lhe a atenção o Palácio Salvo (1928), o maior da cidade naquele tempo, que logo identificou com o Palácio Barolo de Buenos Aires, ambos de Mario Pallanti. Propôs em tom irônico um tiro de canhão a ser disparado da Fortaleza do Cerro, para destruí-lo. Aliás, Le Corbusier esteve no Cerro com Juan Antonio Scasso (1892-1975), visitou as obras do Estádio Centenário (1930), projetado por Scasso para o primeiro mundial de futebol ocorrido em 1930, no Uruguai. conheceu a cidade jardim de Carrasco, bairro onde esteve na casa do arquiteto José Pedro Sierra Morató (1898-1972). Embora a Casa Souto (1927), de Carlos Gómez Gavazzo (1904-1987), fosse mais moderna, Le Corbusier não a visitou. Esteve ainda em escritórios de arquitetos como Rodolfo Amargós (1897-1971), Juan Antonio Rius (1893-1974) e Mauricio Cravotto. As reportagens que aparecem nos painéis demonstram que a imprensa uruguaia foi generosa na difusão da sua presença, em contraste claramente com o sucedido em Buenos Aires, como enfatizam os autores da exposição.
As palestras seriam realizadas nos dias 7 e 8 de novembro, no Salão de Atos Públicos da Universidade, que lotou. Le Corbusier falou do projeto de uma edificação que chamou de “arranha-mar”, que exploraria a diferenças de cotas, avançando sobre a entrada da baía, na direção do Cerro. Foi uma ideia potente, porém inviabilizável. Não chegou a visitar a Faculdade de Arquitetura. Retornou de avião a Buenos Aires no dia 9 para jantar com González Garaño.
No dia 14 de novembro, encerrou sua estada na capital portenha. Deixou Buenos Aires, com escala em Montevidéu, em direção a Santos, em São Paulo. Chegaria na capital paulista no dia 20, um sábado, iniciando a segunda fase de sua viagem.
NOTAS:
LAPUNZINA, Alejandro. Fructíferos desencuentros. Notas sobre la obra sudamericana de Le Corbusier. In: ATRIA, Maximiniano (editor). Le Corbusier y el Sur de América. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1ª edição, 2018.
GUTIÉRREZ, Ramón. Le Corbusier en Buenos Aires. Nuevas lecturas sobre el viaje de 1929. In: GUTIÉRREZ, Ramón et alii. Le Corbusier en el Río de La Plata, 1929. Buenos Aires: CEDODAL; Montevidéu: Facultad de Arquitectura – UDELAR, 2009.