Estamos com os pés em 2025. Sim, o ano passou. E a Lei Caó está prestes a completar 40 anos. Era dia 20 de dezembro de 1985, 97º ano da República, data da Lei nº 7.437 que reconheceu a punição a partir de atos resultantes de preconceito de raça e de cor. À época, tínhamos uma legislação que previa punição especificamente para atos de preconceito de raça ou de cor, a Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos.
As duas leis contemplavam situações consideradas como contravenção penal. Sim, como advogada, para além de escritora, vejo quão importante é explicar que contravenção é uma infração, algo ilícito. Porém, leve. E a penalidade, por correspondência, será leve.
Nosso sistema jurídico opera por punição a partir da previsão da conduta como crime. Para além da privação de liberdade, há também aplicação de multa, ou seja, arde no bolso. “Não existe pena sem lei anterior que preveja o crime”, disse inúmeras vezes o autor do projeto, deputado federal Carlos Alberto Oliveira dos Santos, o Caó (foto da capa), advogado e jornalista baiano que, juntamente com a deputada federal Benedita da Silva, defendeu o reconhecimento.
Não é sobre a penalidade ou sobre a descrição. Eles defenderam a existência do racismo, antes de qualquer outra questão.
Descrever que uma ação é crime implica em detalhamento, descrição, fotografias, cenas narradas. Se você promover a realização daquele verbo indicado, estará cometendo um crime.
A Lei Caó faz parte de um contexto político e de um complexo de políticas públicas que surgiram no Brasil antes da Constituição Cidadã. Era um contexto de redemocratização, um reconhecimento público, quando a gravidade do ato passou a ser considerada crime. Portanto, finalmente, recusar, obstar e negar são infrações mais graves, com punições mais graves.
Com a Constituição Federal de 1988, o racismo deixa seu lugar de contravenção penal, de infração leve, e passa a ser considerado crime. Recusar, impedir, obstar são ações, posturas, condutas praticadas, conjugação de verbos que afetam o outro, que modificam a ação do outro de exercer um direito ou um dever. Isso nunca foi leve.
Como um divisor de águas em um país que até hoje sustenta a ausência de racismo, apontar para uma discriminação racial é desnaturalizar, é deslocar o que se sujeita como sendo “cultura”, como sendo “comportamento de época”. Na luta antirracista, ao tornar explícito que discriminação por cor ou raça não seria tolerada, proporcionou à população negra um instrumento legal para denunciar e combater.
A Lei Caó não resolveu, por si só, o racismo no Brasil, mas foi um marco simbólico e jurídico que permitiu avanços em várias frentes, principalmente na conscientização e no combate às desigualdades raciais.
Como inspiração, trago comigo a reflexão da procuradora do Estado da Bahia, Maristela Barbosa Santos:
“É sobre poder que estamos falando, e neste ponto a lista das coisas sonegadas à população negra é enorme: história, religião, contribuição científica, epistemologia, direito de fala, de poder denunciar o racismo, de desnaturalizar práticas racistas tão sedimentadas, embutidas não só nos brancos, mas na própria subjetividade negra. Essa subjetividade que faz com que um jovem negro não possa sonhar ser juiz, promotor, procurador, que faz com que as pessoas sequer possam suspeitar que o negro caminhando num Tribunal de Justiça é o desembargador, quanto mais o presidente do Tribunal. Uma lógica perversa que nos invade o corpo, nos impõe padrões estéticos, afinal aquele ‘você nem parece advogada’ tem endereço certo.”
O aniversário de 40 anos da Lei Caó, no ano que vem, destaca o quão essencial é, ainda, nomear quando somente a cor e a raça interferem no existir.
Fonte consultada:
Procuradoria Geral do Estado da Bahia
Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.
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Foto da Capa: OAB / SC