A Lei de Murphy é geralmente usada de forma jocosa como a “lei dos azarados” ou daquele pessimista inveterado que vive dizendo: “Não vai dar certo”. Sua forma mais conhecida é: se algo pode dar errado, vai dar errado. Piadas à parte, a Lei de Murphy é, na verdade, uma regra básica da segurança, de prevenção de acidentes e outros eventos adversos, incluindo os eventos climáticos, que são o tema desta coluna.
Pretendo demonstrar aqui que a Lei de Murphy deve ser levada muito a sério. E que, no caso dos eventos climáticos, isto não está acontecendo. Mas, antes, vamos ver como surgiu a tal “lei”.
História
Embora haja relatos de sua utilização anterior, foi somente em 1949 que a Lei de Murphy ganhou a denominação pela qual ficou famosa, oriunda do desenvolvimento de um teste de tolerância à gravidade por seres humanos concebido pelo engenheiro aeroespacial norte-americano Edward Alvar Murphy Jr. Portanto, Murphy era uma pessoa real!
Para poder realizar a aferição da tolerância à gravidade, Murphy projetou um equipamento que registrava os batimentos cardíacos e a respiração dos pilotos. Quando os testes estavam para começar, foi verificado que o técnico responsável instalou o equipamento de forma errada. Os sensores que deveriam registrar as medições falharam exatamente na hora. Frustrado, Murphy disse: “Se este homem tem algum modo de cometer um erro, ele o fará”. Após essa ocasião, para se divertir com seu colega, seus amigos militares adaptaram a frase para “tudo o que puder dar errado dará” e a denominaram de “Lei de Murphy”.
Murphy ficou incomodado com essa brincadeira e com os usos posteriores de sua “lei”, pois a considerava uma assertiva fundamental da área de segurança. Uma confirmação disso foi quando, durante uma conferência para a imprensa, John Stapp, americano nascido no Brasil, que foi um dos pilotos testados no experimento, atribuiu ao fato de que ninguém saiu ferido dos testes exatamente porque os engenheiros aplicaram a Lei de Murphy. Ele então proferiu a frase: “Se alguma coisa pode dar errado, ela dará”, que se tornou sua versão mais conhecida.
Por outro lado, como eu disse acima, há registro de versões anteriores da Lei de Murphy.
Um dos primeiros – se não o primeiro – relato da Lei de Murphy apareceu no suplemento do livro “O Orçamento dos Paradoxos”, de 1866, do matemático Augustus de Morgan, que chegou a uma formulação bem parecida. Num poema do livro, ele dizia “tudo o que pode acontecer irá se fizermos testes o suficiente”.
Onze anos mais tarde (1877), a minuta de uma reunião de engenheiros civis em Londres registrou um pronunciamento de Alfred Holt sobre navios a vapor, que também é um esboço da lei de Murphy: “Verifica-se que qualquer coisa que pode dar errado no mar geralmente dá errado, mais cedo ou mais tarde”.
Nada disso me surpreende, pois a Lei de Murphy me não me parece nada mais do que o bom senso aplicado à segurança e prevenção de acidentes. Você mesmo a aplica sem nem perceber.
A Lei de Murphy e você
Esta não é uma boa época para se falar em acidentes aéreos, mas o fato é que a maioria de nós, mesmo aqueles que nem sabem por que um avião voa, embarca nos aviões sem grande receio. E mesmo os que têm medo de voar reconhecem que ele é infundado.
Aviões de passageiros, principalmente os maiores, são um bom exemplo de sucesso nas áreas de segurança e prevenção de acidentes. Segundo um estudo da Universidade de Harvard, 1 em 1,2 milhão de voos pode sofrer um acidente – com uma em 11 milhões de chances de ser fatal. Em comparação, as chances de acidente de carro são 200 mil vezes maiores, uma em cada 5 mil.
Um avião é um equipamento extremamente complexo, com um total de mais de 3 milhões de peças que têm que funcionar corretamente de forma integrada, caso o contrário pode ocorrer um acidente. E você embarca para suas viagens tranquilamente, sem pensar nisso. Por quê? Porque alguém pensou por você! Milhares de técnicos e engenheiros avaliaram todas as possibilidades de falha em equipamentos, realizaram testes em laboratórios e aviões reais para garantir que nada desse errado com as aeronaves em voo. Percebeu? Lei de Murphy.
O mesmo vale para uma infinidade de aparelhos que utilizamos em nossas casas, no trabalho e nos locais de lazer. Equipamentos a gás, equipamentos elétricos e, sim, automóveis. Muitos de nós não estariam aqui se estes equipamentos não tivessem sido exaustivamente testados e todas as possibilidades de algo dar errado não houvessem sido consideradas.
E deveríamos fazer o mesmo para os desastres naturais. Só que nesse caso nosso histórico não é tão bom.
A Lei de Murphy e os Eventos Climáticos
Eu já mencionei em colunas anteriores que os eventos climáticos extremos estão ficando cada vez mais extremos. Exemplos recentes incluem a tragédia de 2022 em Petrópolis, onde moro, e no Rio Grande do Sul, meu estado natal, onde vive uma boa parte da minha família, ambos resultantes de chuvas intensas, que também ocorreram recentemente em outros lugares, como no Acre, litoral do Nordeste e mesmo outras áreas do Sul e do Sudeste. Além de secas, queimadas e ondas de calor que estão ficando frequentes em todo o país.
E como estamos lidando com isso? De forma lenta e pouco eficaz. Vejamos os dois exemplos citados acima em mais detalhes.
Petrópolis está investindo na recuperação de um canal extravasor, que carrega o excesso de água do centro da cidade para o distrito de Correias, onde há mais espaço para a água espraiar. E há planos para a construção de vários “piscinões” ao longo dos rios que alimentam a área central. O canal extravasor, que é uma obra importante para evitar o alagamento do centro da cidade, deve estar recuperado em breve. Mas os tais piscinões são apenas um plano à espera de que verbas federais sejam eventualmente obtidas. Enquanto isso não acontece, boa parte da cidade ficará sujeita às inundações repentinas comuns em regiões serranas. Tudo o que se fez nessas áreas até agora é colocar avisos de que são locais sujeitos a inundações!
E as inundações e alagamentos não são os fenômenos mais mortais. Em Petrópolis e em todo o Brasil, os deslizamentos de terra (os tais deslocamentos de massa sobre os quais falei na coluna da semana passada) são ainda mais mortais do que as inundações e alagamentos. E o que estamos fazendo a respeito? Essencialmente, obras de recuperação nos locais atingidos, assim como a remoção de uma parcela ínfima das pessoas que moram nas áreas já atingidas.
No entanto, o processo de deslocamento de massa é um processo natural das regiões de relevo acidentado, tornado ainda mais frequente na Serra Fluminense por conta da combinação entre o tipo de rochas, solos e altos declives. E onde vai ocorrer um próximo grande deslizamento? Onde não ocorreu recentemente, pois ao se deslocar, a massa de solo e rochas tende a deixar um perfil mais estável, que vai demorar décadas para sofrer outro evento de grande porte.
E como evitar que os próximos eventos causem vítimas? Primeiro, evitando que a água se infiltre, pois é a pressão excessiva da água o principal fator que causa os deslocamentos de massa. Além disso, retirando os moradores das áreas de risco, o que, como também vimos na coluna da semana passada, é algo difícil e demorado de se fazer.
E o Rio Grande do Sul? Primeiramente, é de fato necessário reparar os danos e ajudar as pessoas a recuperarem suas vidas. Mas é também essencial iniciar as preparações para os próximos eventos. Com o advento do fenômeno La Niña, o sul do Brasil talvez tenha uma pausa em termos de chuvas intensas – embora as secas possam ser um problema.
Mas serão, no máximo, alguns anos, o que é pouco tempo para o muito que tem que ser feito em termos de prevenção e preparação para novas chuvas e inundações. O que está sendo feito ou planejado é pouco e concebido de modo equivocado. Segundo o ecólogo Marcelo Dutra de Silva, professor de ecologia da Universidade Federal de Rio Grande (FURG), cujos alertas que ele vem fazendo desde 2013 têm sido considerados como visionários em termos do que viria a acontecer, estamos insistindo no erro de reconstruir moradias e demais instalações em áreas afetadas anteriormente. Também já falei sobre a questão da reconstrução em outra coluna. E minha colega Sílvia Marcuzzo está escrevendo uma série de colunas sobre “Prevenção de Desastres” aqui na Sler.
O fato é que, se os gaúchos não compreenderem e adotarem como regra em suas ações que os eventos climáticos de 2023 e 2024 irão ocorrer novamente de forma ainda mais catastrófica, as condições para que as próximas tragédias ocorram no Rio Grande do Sul já estão sendo preparadas.
O que Murphy diria?
Murphy diria que, considerando-se principalmente as perspectivas que temos para as mudanças climáticas, que se um rio pode inundar, ele vai inundar, se uma encosta pode deslizar, ela vai deslizar, se ondas de calor podem ser mortíferas, elas o serão, e assim por diante. O aquecimento global e seus efeitos vieram para ficar e nós estamos fazendo muito pouco para evitar que ele chegue a níveis alarmantes, e menos ainda para nos preparar para suas consequências.
É difícil entender por que a humanidade está assim paralisada diante de tantas ameaças reais e iminentes. Até que ponto precisaremos chegar para que nos mobilizemos na intensidade e abrangência que se fazem necessárias? É surpreendente ver como as pessoas, depois de uma grande tragédia, com exceção das mais duramente atingidas, passam rapidamente a se preocupar com as pequenices do cotidiano, enquanto o planeta se deteriora rapidamente1.
Na próxima vez que alguém fizer piada com a Lei de Murphy, fique atento, porque a piada pode ser sobre você. E sua vida.
1Para uma visão completa dos processos de deterioração do planeta causados pela ação humana, sugiro (novamente!) a leitura do meu livro “Planeta Hostil”, que pode ser encontrado em livrarias de todo o Brasil e em lojas online.
Observação final: para vídeos e textos adicionais, confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Edward A. Murphy Jr.
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