Como expliquei em artigo publicado aqui na Sler, em 11/09/2023, com os movimentos feministas da década de 1970, a violência de gênero ganhou notoriedade e o Estado passou a ser responsável por propor ações e medidas de proteção para punir os agressores. Todavia, somente em 2006 a Lei Maria da Penha (Lei 11.340, 2006) foi sancionada e estabeleceu marcos legais para a punição de crimes de gênero.
Essa lei, além de estabelecer mecanismos de proteção para a mulher, elencou os vários casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, os quais elenco abaixo:
“I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Graças à Lei Maria da Penha, as mulheres passaram a denunciar os diversos tipos de violência (agressões físicas, verbais e psicológicas) na esperança de que seus agressores fossem punidos e elas tivessem suas vidas reconstruídas. Em decorrência da Lei Maria da Penha, a Lei 13.104, datada de 9 de março de 2015, implantou no código penal o crime de feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Essa lei fixou como pena pelo crime de feminicídio a reclusão de 12 a 30 anos.
Fiz essa introdução para mostrar a enorme importância da aplicação dessa lei, especialmente em um país em que a violência contra a mulher foi banalizada, e que os números de feminicídios são assustadores. Conforme noticiado pela Agência Brasil, em 13 de março de 2025 , “a cada 17 horas, ao menos uma mulher foi vítima de feminicídio em 2024”, isso mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha. No Brasil, há uma epidemia de violência contra a mulher.
Esse tipo de violência também acontece muito com a população LGBTQIAPN+ e o Supremo Tribunal Federal (STF) tem atuado muito na defesa dos direitos dessa população, na falta de uma ação efetiva do Estado na defesa de tais vítimas. O STF não busca apenas promover a justiça em caso de violência, ele vem buscando a concretização das normas da Constituição Federal para que sejam respeitadas a dignidade de toda a população, e não apenas daqueles que são heterossexuais.
No boletim do STF EM FOCO, sobre Direito Constitucional, atualizado em 19 de março de 2025, houve uma análise detalhada de julgamento realizado pelo STF, no dia 21 de fevereiro de 2025, que reconheceu no Mandado de Injunção número 7452 a omissão do Congresso Nacional e estendeu a proteção da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos masculinos e às mulheres transexuais e travestis.
Além disso, no referido boletim, o STF EM FOCO relembrou outros julgamentos importantes realizados pelo STF envolvendo a população LGBTQIA+, que valem ser mencionados, em razão da excelente atuação protetiva da nossa mais alta corte:
– Na ADI 4277 (Plenário, DJe 13.10.2011), o STF reconheceu a constitucionalidade da união estável homoafetiva, garantindo as mesmas regras aplicáveis às uniões estáveis heteroafetivas.
– Na ADPF 291 (Plenário, DJe 11.5.2016), o STF reconheceu a inconstitucionalidade de termos discriminatórios, em razão da orientação sexual do destinatário da norma, e declarou a inconstitucionalidade das expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não” constantes do art. 235 do Código Penal Militar. No entanto, o STF deixou claro que, após essa decisão, a prática de ato libidinoso em ambiente castrense continua tipificada pelo Código Penal Militar. Somente as expressões discriminatórias foram eliminadas do tipo penal. Portanto, embora a conduta possa ser punida em razão da orientação sexual do autor, ela deverá ser punida em razão do desvio comportamental em ambiente de trabalho.
– Na ADO 26 e o MI 4733, julgados em conjunto em 13.06.2019, o STF decidiu que, até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvam aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei de Racismo (Lei nº 7.716, de 8.1.1989).
– Na ADI 5971 (Plenário, DJe 25/09/2019), o Plenário do STF decidiu que, para fins de aplicação de políticas públicas no Distrito Federal, o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo não pode ser excluído do conceito de entidade familiar.
– Na ADPF 467 (Plenário, DJe 07/07/2020), o STF declarou inconstitucional uma lei do Município de Ipatinga-MG que excluía da política municipal de educação referências à diversidade de gênero e orientação sexual na rede pública de ensino.
– Com relação especificamente à saúde das pessoas LGBTQIAPN+, vale notar que na ADI 5543 (Plenário, DJe 25.08.2020) foi declarada a inconstitucionalidade da restrição de doação de sangue por homens homossexuais e bissexuais, quando a negativa fosse baseada apenas na sexualidade.
– No julgamento da ADPF 784, em 26/06/2024, no qual o Plenário do STF decidiu que é necessário garantir aos homens e mulheres trans acesso igualitário a todas as ações e programas de saúde do SUS, especialmente aqueles relacionados à saúde sexual e reprodutiva, como agendamento de consultas nas especialidades de ginecologia, obstetrícia e urologia, independentemente de sua identidade de gênero, sendo fundamental eliminar obstáculos burocráticos que possam causar constrangimento à pessoa e atraso no acesso à prestação de saúde. Nesse julgamento, foi determinado ao Ministério da Saúde que sejam adotadas todas as providências necessárias para garantir o acesso das pessoas transexuais e travestis às políticas públicas de saúde, especialmente para:
“i. determinar que o Ministério da Saúde proceda a todas as alterações necessárias nos sistemas de informação do SUS, em especial para que marcações de consultas e de exames de todas as especialidades médicas sejam realizadas independentemente do registro do sexo biológico, evitando procedimentos burocráticos que possam causar constrangimento ou dificuldade de acesso às pessoas transexuais;
ii. esclarecer que as alterações referidas no item anterior se referem a todos os sistemas informacionais do SUS, não se restringindo ao agendamento de consultas e exames, de modo a propiciar à população trans o acesso pleno, em condições de igualdade, às ações e serviços de saúde do SUS;
iii. determinar que o Ministério da Saúde proceda à atualização do layout da Declaração de Nascido Vivo (DNV), para que dela faça constar a categoria “parturiente/mãe”, de preenchimento obrigatório, e no lugar do campo “responsável legal” passe a constar o campo “responsável legal/pai”, de preenchimento facultativo, nos termos da Lei 12.662/12.
iv. ordenar ao Ministério da Saúde que informe às secretarias estaduais e municipais de saúde, bem como a todos os demais órgãos ou instituições que integram o Sistema Único de Saúde, os ajustes operados nos sistemas informacionais do SUS, bem como preste o suporte que se fizer necessário para a migração ou adaptação dos sistemas locais, tendo em vista a estrutura hierarquizada e unificada do SUS nos planos nacional (União), regional (Estados) e local (Municípios).”
Voltando ao julgamento que estendeu a proteção da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos masculinos e às mulheres transexuais e travestis, vale salientar que ele decorreu de um Mandado de Injunção Coletivo (MI) ajuizado pela Associação Brasileira de Famílias HomoTransAfetivas- ABRAFH, em razão de omissão legislativa atribuída ao Congresso Nacional, relativamente à edição de legislação específica contra a violência doméstica ou intrafamiliar que proteja homens GBTI+, bem como legislação preventiva e supressiva do controle coercitivo contra homens GBTI+ e mulheres, em geral cishétero e LBTI+.
A referida Associação sustentou que deve ser declarada a mora inconstitucional do Congresso Nacional na aprovação de legislação protetiva contra a violência doméstica ou intrafamiliar sofrida por homens GBTI+ em relações com outros homens, pois haveria proteção deficiente (princípio da proporcionalidade) de homens gays, bissexuais, trans, intersexo e não cishétero em geral em relações homoafetivas. Como se verifica, esse MI não se aplica às relações heteroafetivas, o que considero uma lástima. Mais adiante, abordarei esse tema.
O direito postulado era tão forte e evidente que, por unanimidade, o Plenário do STF reconheceu a mora do Congresso Nacional e determinou a incidência da norma protetiva da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos do sexo masculino e às mulheres travestis ou transexuais nas relações intrafamiliares, tendo em vista a ausência de norma que estenda a proteção da Lei Maria da Penha a esses grupos de pessoas LGBTQIAPN+, de tal modo a inconstitucionalmente inviabilizar a sua fruição do direito fundamental à segurança pública, em clara violação da proibição de proteção deficiente, oriunda do princípio da proporcionalidade.
Conforme relata o Boletim do STF EM FOCO, o relator desse MI, Ministro Alexandre de Moraes, destacou que o Estado não pode permanecer omisso perante essa naturalização da violência contra o gênero feminino, pois isso contraria o princípio da vedação da proteção insuficiente e descumpre o compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, §8 da CF).
Para o Ministro, há uma responsabilidade do Estado em garantir a proteção, no campo doméstico, a todos os tipos de entidades familiares, inclusive a população LGBTQIAPN+, pois na identidade de gênero, ainda que social, por ser um dos aspectos da personalidade, estão inseridos o direito à identidade, à intimidade, à privacidade, à liberdade, e ao tratamento isonômico.
Em razão disso, como verificada a ausência de norma que estenda a proteção da Lei Maria da Penha aos determinados grupos de pessoas LGBTQIAPN+, o que impede a fruição do direito fundamental à segurança pública, em clara violação da proibição de proteção deficiente oriunda do princípio da proporcionalidade, foi determinado pelo Plenário do STF que a Lei Maria da Penha incida também aos casais homoafetivos masculinos e às mulheres transexuais e travestis.
Excelentes os julgamentos do STF e de clareza solar as justificativas legais que os embasaram. Só lamento que a aplicação da Lei Maria da Penha não seja também estendida aos casais héteros, que os dispositivos da referida lei também protejam os homens que sofrerem as violências referidas nesse diploma legal. Ainda que as estatísticas demonstrem que as mulheres sejam as grandes vítimas de violência doméstica e familiar no Brasil, existem homens que são vítimas de mulheres tão cruéis ou violentas quanto eles. Aliás, existem vários casos em que mulheres assassinaram seus maridos, incorreram em perseguições, assédios e a toda sorte de violência contra seus maridos, companheiros, namorados e familiares, por exemplo. Até mesmo uma pastora e ex-deputada foi condenada, em 2022, pelo homicídio triplamente qualificado do seu marido, pastor, a 50 (cinquenta) anos de prisão. Diante disso, espero que todos os brasileiros, independentemente do sexo, tenham o direito à proteção legal devida, tenham os mesmos direitos e obrigações.
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Foto da Capa: Gerada Por IA.