Uber, o aplicativo, vem desempenhando pelo menos um par de funções importantes em tempos que excluem a maioria e enrodilham todos em si mesmos. Oferece trabalho para muitos que já não podem exercer os seus, em meio a tanta recessão explícita, substituição atroz do homem pela máquina, e outras mazelas laborais. As condições, sabemos, não são boas, mas os motoristas vêm contando que é menos ruim do que ficar desempregado.
Eles vêm contando, aí é que está. Uber, o aplicativo, vem oferecendo um espaço de troca de histórias em tempos de isolamentos forçados, silêncios profundos ou conversas virtuais em aplicativos que dispensam presenças. O Uber não dispensa a presença. Dentro dele, já ouvi emocionado a história da modelo Plus Size Beatriz. E a do padeiro músico Danilo, entre tantas outras narrativas redentoras. Eu já não era o mesmo depois delas.
Mas, dentro de um Uber, a narrativa é uma via de mão dupla e eu também já contei as minhas, quando só o(a) motorista ouviu. Eu contava no banco de trás, com a atenção de um olhar direto do retrovisor e dois ouvidos atentos por todo o veículo, quando desabafei pelo menos um par de lutos e desilusões amorosas.
Mas o sistema, como qualquer outro, nem sempre funciona. Ontem me levantei cedo, desmarquei dois compromissos e fui me vacinar para Covid e Dengue, essa em surto espalhado na cidade. Andei meia hora até o Posto Santa Cecília, onde fui informado que estavam sem. Não sabiam informar onde teria. Caminhei mais meia hora até o Posto de Saúde Modelo, igualmente desprovido das duas, mas informando que ambas estavam completamente em falta, em toda a rede pública.
Desolado e atrasado para um compromisso de desmarcação impossível, chamei o Uber. Mal botei o cinto de segurança, comecei o desabafo: despertar cedo, hora de caminhada, perda de tempo e, pior, seguia vulnerável para dengue e covid. Contei, narrei, relatei diante de olhar nenhum no retrovisor, além de ouvidos concentrados em um sertanejo universitário de alto volume. Sequer um muxoxo daquele motorista. Foi então que me enrodilhei novamente e precisei depurar comigo mesmo os meus revezes e suas terríveis consequências.
Aí é que está. Na experiência dos Médicos sem Fronteiras e da Cruz Vermelha. Ou do psicólogo Ney Bruck, que defendeu tese e publicou livro sobre o tema, já sabemos que, diante de um trauma, precisamos falar. Justo essa fala em companhia da escuta impede que a dor vire estresse ou outra neurose qualquer. Para as crianças, uma folha de papel e canetinhas para falarem do seu jeito. Ou uma brincadeira. Para o adulto, basta um par de ouvidos empáticos.
Sem nada disso, naquela manhã outonal, iniciou em mim aquela luta entre a minha dor e seus destinos. Metabolizá-la e transformá-la em outra coisa menos doída? Ou vê-la crescer e me empurrar ao deserto do desamparo?
Felizmente, escrevo e foi ali, leitor, que comecei a imaginar a tua presença salvadora. Essa que se materializou na escrita e que, chegando à última linha, salva-me agora.
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Foto da Capa: Gerada por IA.