Acompanhei curiosa e emocionada a história do professor universitário de Teoria Estética que, em um momento feliz de reconhecimento da sua trajetória profissional e intelectual, é demitido por conta de questões políticas. Para fugir da perseguição que certamente sofreria, parte para um vilarejo do interior do Rio Grande do Sul. E é nesse momento de insegurança e necessária invisibilidade que descobre uma doença terminal. O ano é 1984. O Brasil ainda vivia os absurdos da ditadura militar que, mesmo no final, não dava trégua. Apesar do medo e da inquietude, o professor acaba vivendo momentos de rara beleza, permeados pelo amor, pela arte e por diálogos instigantes com a mulher que o recebe e o protege em um casarão. Momentos que conferem ainda mais mistério e beleza ao romance “O Inventor da Eternidade”, do escritor Liberato Vieira da Cunha (Editora Almedina Brasil, 2022). A ilustração da capa é de Eduardo Vieira da Cunha, professor, fotógrafo e desenhista.
O jornalista Nilson Souza, colunista de ZH, em um artigo sobre o livro no Caderno DOC de 17/18 de dezembro de 2022, diz que o autor é “um pintor de palavras”, referindo-se à escrita, ao conteúdo e ao personagem principal. É de uma riqueza inusitada a maneira como Liberato envolve o leitor em uma história que mistura todas as facetas humanas. Vai do acolhimento, passando pela repressão, pelos resquícios do nazismo que ainda sobrevivia em uma região do interior gaúcho e pela arte, considerando sempre a luta pela liberdade e pela democracia.
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Logo depois desta leitura, recebi um presente que me fez viajar pelos anos 1970 e pela minha paixão pela Bahia: “Arembepe, Aldeia do Mundo – Sonho, Aventura e Histórias do Movimento Hippie”, livro de Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira, com ilustrações de John Chien Lee (RJ, Máquina de Livros, 2022). Uma infinidade de histórias e personagens incríveis de um tempo em que para se aventurar mundo afora bastava uma mochila cheia de sonhos nas costas.
“Quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou”, cantava Gilberto Gil
Conhecer a Bahia, viver a emoção inexplicável de pisar no Pelourinho, que é para mim o coração de Salvador, foi realizar um sonho. E a emoção me acompanhou pelo Terreiro de Jesus (Praça 15 de Novembro), Praça da Sé com a catedral ao fundo, Rua Chile, com uma parada na Praça Castro Alves – “que é do povo como o céu é do avião”, diz Caetano Veloso na canção “Um Frevo Novo”. Andar ladeira abaixo, ladeira acima, descer e subir pelo Elevador Lacerda, vasculhar o Mercado Modelo e tantos outros lugares, até chegar ao Porto da Barra, ganhar a orla, perder o olhar naquele mar tão azul e relaxar. Depois, seguir para Arembepe, o eterno paraíso dos hippies. O livro reativou memórias e me fez revisitar lugares que são parte da minha vida.
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Aí, retomei a leitura de “Mamãe Trabalhava à Noite”, de Emir Rossoni (Editora Bestiário, Porto Alegre, 2022), contos e histórias instigantes que me emocionaram muito. Emir já ganhou prêmios como o Açorianos de Literatura e o Guarulhos de Literatura de Livro do Ano em 2019 por “Caixa de Guardar Vontades”. Com “Domanda Nísio” conquistou o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura em 2018 e o Prêmio Bunkyo em 2020. Com “Erros, Errantes e Afins” levou o Prêmio CEPE de Literatura 2020.
Três passagens de “Mamãe Trabalhava à noite” me inquietaram. No início do conto “Todas as cobras”, página 63, o autor diz: “Todas as cobras são carnívoras. Preferem comer pequenos animais com porte não muito desenvolvido: aves, roedores, pequenos cães, anões”. A verdade é que não entendi por que os anões estavam naquele grupo de “pequenos animais com porte não muito desenvolvido”. No final da página 64, segue: “E os órgãos duplos, que temos nós, anões, e demais animais lado a lado, na cobra estavam um na frente do outro; assim, no centro, podia-se trafegar por um corredor que levava até o final da cobra”. Na página 66, também no final, mais uma referência estranha: “Muito tempo passou, acho que nove meses, que é o período que os anões levam para virar cobras”. E na página 67: “As cobras nascem do mesmo jeito que morrem. Nascem expulsas do seu mundo. Nascem não bem-vindas no mundo em que caem de boca aberta. Por isso, preferem comer pequenos animais com porte não muito desenvolvido: aves, roedores, pequenos cães, anões”.
Pontos de interrogação!
Impossível não saltarem inúmeros pontos de interrogação na leitura dessas passagens que se referem aos anões de um jeito tão estranho – animais não muito desenvolvidos e alimentos para cobras? Sei que é ficção, que é literatura, que ando sensibilizada com o uso às vezes pesado da palavra anão, mas me incomodaram muito as referências. E engasguei!