Ler você, Lélia Gonzalez (1935-1994), é como assistir a uma aula de antropologia que revela o percurso histórico das pessoas pretas no Brasil. Desde a sua atuação no Movimento Negro Unificado, que foi essencial na luta antirracista durante a ditadura militar, sua trajetória inspira e ensina. Intelectual, filósofa, antropóloga, mãe e avó, completaria 90 anos no próximo dia 1º de fevereiro.
Seu legado permanece vivo como o de uma griô, registrado em livros e ensaios que desconstroem o mito da democracia racial, apontando as relações de raça, gênero e classe, ao evidenciar como a intersecccionalidade é essencial para compreender a discriminação e a falta de acesso a direitos. Se estivesse aqui hoje, talvez se entristecesse ao constatar que algumas formas de opressão ainda persistem, enquanto outras se sofisticaram para manter as exclusões.
Você denunciou o silenciamento de mulheres negras em ambientes de poder, e isso ainda acontece. Dados da pesquisa “Mulheres Negras na Liderança” mostram que oito em cada dez empresas têm menos de 10% de mulheres negras em cargos de liderança, enquanto 70% delas ainda são lideradas por homens. A cultura do tokenismo persiste, mascarando a ausência de mudanças reais.
Nas escolas públicas, a precariedade continua. O tradicional quadro de giz não se tornou peça de museu e as comunidades vulneráveis ainda carecem de acesso a tecnologias. Esse sistema também perpetua o eurocentrismo e ignora a África como berço da humanidade. Nas redes sociais, a guerra de narrativas evidencia influenciadores que promovem jogos de azar, prejudicando a saúde mental e financeira das famílias.
Na política, a representatividade das pessoas pretas ainda é muito baixa. Segundo dados do Inesc, em 2024, considerando todos os cargos, foram eleitos 54,6% brancos, 37,8% pardos e 6,4% pretos. Nas prefeituras, apenas 243 (4,3%) mulheres negras chegaram ao cargo. Embora estejamos em maior número, 55,5% de acordo com o Censo de 2022, os mecanismos de reprodução do patriarcado e da branquitude nos impedem de ocuparmos os espaços de poder. Como você destacou, pessoas negras continuam sendo empurradas para favelas, cortiços e espaços de exclusão.
No campo do afeto, os avanços na liberdade de escolha e no respeito às diversidades convivem com a morte pela orientação sexual. Em 2024, o país bateu recorde de feminicídios e registrou um estupro a cada seis minutos, aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, 66% das mulheres negras que declaram ter sofrido violência doméstica não possuem renda ou esta não é suficiente, segundo o Instituto de Pesquisa DataSenado e o Observatório da Mulher contra a Violência. Ou seja, a dependência econômica é um fator de vulnerabilidade, aliado ao machismo que insiste em tratá-las como objetos.
Mas, Lélia Gonzalez, também há esperança. A autoestima coletiva cresce, e a juventude inspira resistência. Pessoas pretas ocupam espaços como empresárias, cientistas, artistas e influenciadoras. Políticas afirmativas impulsionam esse movimento. De acordo com dados do Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 1,1 milhão de estudantes ingressaram no ensino superior público por meio da Lei de Cotas, entre 2012 e 2022.
A injúria racial agora é reconhecida como crime de racismo, o que amplia o debate e atrai aliados. No entanto, a demora no julgamento do caso do assassinato de Beto Freitas, em Porto Alegre, e a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de apenas cinco anos, em Recife, são exemplos do descaso e da violência contra todos nós. Queremos justiça! Isso requer organização, e, por isso, ainda temos muitas lutas para avançar. Você sabe disso.
Nosso acalanto é o seu legado, que nos faz enxergar a “Amefricanidade” com orgulho, reconhecendo negros e indígenas como pilares da construção do Brasil e da América Latina. Somos múltiplos e diversos, e nos encontramos nos espaços de aquilombamento. Aqui em Porto Alegre (RS), estamos na Odabá, na Frente Negra Gaúcha, no Sopapo Poético, no Griô Burguer, no Mercado Público, nas escolas de samba, nas festas, nos terreiros, nas famílias, nos territórios negros, em tantos outros espaços, e na atitude de cada mulher preta que cumprimenta outra mulher preta, mesmo sem se conhecer, e se admira.
Cada pessoa preta, da sua forma, resiste ao apagamento: seja batendo cabeça para o orixá, dançando, ocupando espaços de poder, prosperando em negócios, sendo feliz no lugar que nós quisermos. Axé!
Fontes consultadas:
Gonzalez, Lélia; Hasenbalg, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e SILVA, Luiza Bairros (org.). Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 223-245.
ZIGONI, Carmela; RIBEIRO, Cristiane. Dez anos depois, o quanto as pessoas negras ocuparam a política? Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: Dez anos depois, o quanto as pessoas negras ocuparam a política? - Le Monde Diplomatique. Acesso em:20/01/2025
Paula Martins é associada da Odabá, diretora da Mkt de Causas, que nasce com o propósito de construir uma Comunicação Estratégica para o seu Negócio, a sua Marca ou Projeto Social. (@ppaulamartinss)
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Foto da Capa: Acervo Lélia Gonzalez - IMELG