Se puxarmos na memória, todos nós temos uma preta de quem recebemos atenção em algum momento da vida.
Elas estão em muitos lugares, às vezes são mulheres que não geraram filhos, mas que recebem uns tantos para cuidar, como se filhos fossem. Segundo dados de 2020 da Agência Brasil, as mulheres negras representam 27,8% da população brasileira.
Como advogada especialista em direito do trabalho, observo as pessoas nos seus mais diversos locais de trabalho e, tendo oportunidade, converso com elas.
Há tempos me chama atenção a discrição de pessoas que trabalham com limpeza, em casas particulares ou em locais comerciais, na maioria mulheres pretas.
Já observou?
Algumas são tão silenciosas que é difícil percebê-las. Outras sequer nos olham nos olhos se não fizermos um gesto de atenção e cumprimento explícito a elas.
Muitas delas participam tanto das nossas vidas que já se tornaram nossas maiores confidentes, não importa em que lugar estejam.
Como prestadoras de serviços em geral, passamos por diversas dessas mulheres, na sua maioria negras.
Trago aqui algumas e convido você a fazer o mesmo.
Percebo a minha mãe como uma mulher negra. Ela nasceu em 1948 e há pouco tempo descobri que ela nunca precisou se preocupar em se autodeclarar o que quer que fosse.
Eu nasci em 1978 e sempre me declarei parda.
Ouvi dela o lamento sobre não conseguir prolongar a árvore genealógica da família, pois quando chegamos na pessoa escravizada, acabam os registros.
Na sequência, meu avô materno (1918), meu bisavô (1874) e a mãe dele (não temos registro), mulher negra, escravizada. Contando são apenas cinco gerações.
Entre a Lei Áurea (Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888) e o meu nascimento são apenas 90 anos.
Esse passar de tempo pode ser o de uma vida longeva, por exemplo, do meu meu avô paterno, hoje com 101 anos.
Voltando às mulheres negras
Fico intrigada com o tanto de força que essas mulheres têm para oferecer apoio aos seus filhos e todos esses filhos que agregam ao longo da vida.
Como escravizadas, eram amas de leite, atualmente, como empregadas domésticas e babás, muitas vezes, ainda continuam deixando de atender seus próprios filhos para dar conta dos filhos de seus patrões.
Mesmo analfabetas, muitas estimulavam seus filhos ou os filhos que lhes eram confiados a estudar e “ser alguém na vida”.
Esse caminho é (ou era) o esperado para essas mulheres. Faz (ou fazia) parte das suas expectativas.
Atualmente podemos fazer diferente.
Conseguem imaginar o quanto de riqueza existe nessas mãos?
Não?
Que tal pensar em somar à riqueza dessas mulheres o tanto de acumulação de dinheiro que as mulheres e homens que receberam seus cuidados desfrutam? Me refiro ao dinheiro mesmo, esse do capitalismo, em espécie, patrimônio, reconhecimento ou tantas outras formas de poder.
Conseguem imaginar onde conseguimos chegar? Na capa da Forbes talvez?
E aí me pergunto (e pergunto a você): enxergar o tanto de riqueza que essas mulheres negras movimentam nos autoriza – ainda – a manutenção do mercado de trabalho que oferece uma expectativa tão distante das suas potências?
É verdade mesmo que essas mulheres são consideradas membros da família? Se acontecer algo e elas não puderem mais prestar o serviço de doméstica, o que restou para elas?
Tamanha desigualdade voltou a gritar no período da pandemia.
E vou aproveitar esse espaço para nos convocar como sociedade.
Vamos abrir caminho para mulheres negras potentes, sem medo.
Talvez não seja simples para quem aprendeu a fazer de outra forma.
Porém, contudo, entretanto… se estamos lendo, é porque em algum momento paramos para estudar. Se estudamos, tendo interesse ou não, nos desafiamos a aprender algo que não está em nós e que demanda um movimento bastante exigente.
Que tal aproveitarmos todo privilégio de saber estudar que desfrutamos para fazer diferente hoje?
Vejam, enxerguem, reconheçam os muitos frutos do esforço de tantas mulheres negras que prosperam! Voltem os olhos às mulheres negras que quebraram barreiras, não para questioná-las como exceção, e sim para que outras mulheres negras também tenham oportunidade de fazê-lo. (Leia artigo da Forbes aqui)
De amas de leite, as mulheres negras chegaram a executivas. De analfabetas, passaram a pós doutoras.
Da minha mãe, lembro de muito amor, de deixar a medicina formal para desenvolver um trabalho de prótese mamária atendendo mulheres em situação de extrema vulnerabilidade, com a porta entreaberta para também dar conta de cuidar dos seus três filhos.
De cuidadoras, podemos oferecer que algum dia sejam cuidadas?
Pausa, por gentileza, para puxar da memória as lembranças que já temos e partir para fazer algo diferente.
*Denise Ribeiro Denicol, 44 anos, mãe de dois filhos, um adulto e um bebê, é advogada especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, fundadora da Denise Denicol Consultoria Trabalhista e gestora do Afro’N’Talks, evento mensal promovido pela Odabá, Associação de Afroempreendedorismo.