Segunda-feira, 20 de janeiro de 2025. O mundo acompanha a posse de Trump para o seu segundo mandato. Juras à Constituição, ombreado pelos maiores “proprietários” da tecnologia das comunicações. Discursos, determinações contundentes, coletivas à imprensa, gestos emblemáticos, decisões que inevitavelmente terão impacto global. Clima de temperatura gélida em Washington.
O que pensar, o que se pode dizer?
É de Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), escritor norte-americano mais conhecido pelo pseudônimo Mark Twain, a frase: “A diferença entre a palavra certa e a palavra quase certa é realmente uma grande questão – é a diferença entre o relâmpago e o vaga-lume”.
Não há quem, de sã consciência, não se pergunte: para onde estamos caminhando?
Volto à casa da infância, estou sentado na poltrona da sala. Taquara e seus verões quentes. Abro o armário da vitrola e apanho um dos dezoito volumes de capa azul do Tesouro da Juventude. O “suicídio dos lemingues” parece ser uma resposta.
O lemingue (Lemmus lemmus) é um pequeno roedor que vive no bioma ártico da tundra, muitas vezes sob uma fina camada de neve. Fazem parte de uma irradiação evolucionária de mamíferos, a superfamília Muroidea, que inclui também os hamsters, os gerbilos, os ratos e os camundongos.
Fantasias sobre os lemingues vem de muitos séculos. Em 1530, o geógrafo Zeigler, de Estrasburgo, teorizou que eles viviam para além das estrelas e caíam dos céus durante o período de tempestades. Morriam subitamente na primavera, quando a relva voltava a crescer. Isso também aparece em relatos folclóricos entre os esquimós. No século seguinte, o mito foi refutado. Olaus Wormius, naturalista e historiador dinamarquês, afirmou que até aceitava que os animais “caíssem do céu”, mas que teriam sido levados pelo vento e nunca como uma geração espontânea.
O que se sabe é que, movidos pelo instinto de sobrevivência, algumas espécies de lemingues migram em grandes grupos, sempre que a densidade populacional se torna insuportável. Não aptos a nadar, podem, nessa desesperada procura por um novo habitat, morrer ao cruzar um curso de água. Esse fato, somado à reconhecidas flutuações de populações de lemingues, deve ter contribuído para o desenvolvimento de mitos.
A história do pretenso “suicídio” coletivo popularizou-se no século XX. Em 1955, o ilustrador da Disney e “pai” do Tio Patinhas, Carl Barks, criou o desenho “The Lemming with the Locket”. Inspirado num artigo, de 1954, da revista National Geographic, que mostrava uma quantidade enorme de lemingues se lançando em abismos na Noruega.
Ainda maior influência teve o filme “White Wilderness”, título traduzido para Ártico Selvagem. Escrito e dirigido por James Algar, recebeu o Oscar de melhor documentário em longa-metragem na premiação de 1959. Outro sucesso dos estúdios Disney. Numa cena impactante, centenas de lemingues saltam de um penhasco às margens do Oceano Ártico.
Em 1983, uma produção da Canadian Broadcasting Corporation, denunciou que a cena dos lemingues foi fraude. Era impossível que os animais tivessem se lançado ao mar, em primeiro lugar porque a cena foi filmada no rio Bow, perto de Calgary, no interior do Canadá, uma área que não é natural a eles. Teriam comercializado os pequenos animais e montado a sequência com plataformas giratórias, neve e planos fechados. Estranho arranjo para o mundo mágico de Disney. Em certas partes da película, pode-se ver que alguns param na borda e tentam voltar, mas não conseguem. Não houve suicídio em massa: os lemingues foram encurralados e lançados deliberadamente ao encontro da morte.
Não é de hoje que se cultuam mitos, inventam-se versões, criam-se narrativas, manipulam-se massas. Muitas vezes com requintes de crueldade e patrocinadas por falaciosas boas intenções. Ciclos históricos são esperados, mas vive-se um inegável momento de inflexão.
Recorro novamente à Mark Twain: “A verdade é mais estranha que a ficção, mas é porque a ficção é obrigada a se ater às possibilidades; a verdade não”.
Dá para sentir um certo frêmito no solo. Entre os lemingues, alguns parecem perceber a grama falsa assentada sobre uma plataforma giratória.
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