Hoje volto a escrever sobre Licínio Azevedo. O que me mobiliza é ter acabado de ler “Coração Forte” (Edições Dinossauro/Lisboa/1995), primeiro livro dele publicado em Moçambique nos anos 1980. Narrativas contundentes sobre a guerra colonial, recolhidas em conversas com os protagonistas – guerrilheiros, mulheres, crianças e velhos. Os relatos me levaram para a mostra de filmes Licínio Azevedo – Um Gaúcho em Moçambique exibida na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana no início de dezembro de 2022, último mês de um ano difícil, marcado por eleições e uma polarização política assustadora. O centro de Porto Alegre foi tomado por pessoas inconformadas com a derrota, que pediam a volta da ditadura e desfilavam enroladas na bandeira brasileira.
O clima era desagradável e tenso, especialmente para pessoas que viveram tempos de perseguição, tortura e morte, como eu vivi. Mas ao entrar no escurinho do cinema me entregava para as vivências trazidas pelo olhar de um cineasta que mergulhou em realidades difíceis e mostra o abuso dos colonizadores portugueses e o desejo de libertação de um povo subjugado. Vi 13 documentários e longas-metragens de ficção, produzidos e dirigidos por Licínio nas últimas três décadas. Ele apresentava as sessões e ficava à disposição do público para conversar após a exibição.
Gaúcho da minha geração, Licínio vive em Moçambique desde 1978. Seus filmes, assim como o livro, mostram o cotidiano de um país que ainda sofre as consequências de uma guerra civil cruel, com reflexos na economia, na cultura, na autonomia e nas relações pessoais. No cinema, a mistura de realidade e ficção traz para a tela atores, não atores, dialetos, lutas e depoimentos contundentes. No livro, a narrativa impactante sobre as dores de uma guerra, fome, mortes, desistências. Um e outro a partir de um olhar instigante que me levou para uma África que conhecemos muito pouco.
Licínio fez o ginásio no Colégio Júlio de Castilhos e cursou Jornalismo na PUCRS. Trabalhou na editoria de polícia dos jornais Zero Hora e Folha da Manhã e passou por vários veículos da imprensa alternativa em São Paulo, como editor e colaborador. O espírito aventureiro o levou para o mundo. Andou pela América Latina, da Argentina ao México. Em 1980, recebeu o prêmio brasileiro de jornalismo Vladimir Herzog. Após um período em Portugal, foi para a África, Guiné-Bissau (1976-1977), onde trabalhou na formação de jornalistas no jornal “Nô Pintcha”.
A ligação com Moçambique foi através do recém-inaugurado Instituto Nacional de Cinema, a convite do cineasta Ruy Guerra – moçambicano de nascimento. Sua trajetória é marcada por parcerias com outros realizadores, como Jean Rouch e Jean-Luc Godard, Celso Luccas, José Celso Martinez Corrêa e Santiago Alvarez. A experiência com grandes reportagens foi um impulso para Licínio escrever roteiros e dirigir. Fundou a produtora cinematográfica Ébano Multimedia. Venceu por três vezes o Festival Internacional de Produções Audiovisuais/FIPA, de Biarritz, o mais importante evento europeu de obras para a televisão. Em 1999 ganhou o Prêmio FUNDAC/Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural de Maputo pelo conjunto da sua obra cinematográfica. Em 2015 recebeu homenagem da Cinemateca Portuguesa com o ciclo “O Espírito do Lugar: Licínio Azevedo, cineasta de Moçambique”. É autor dos livros “Diário da Libertação”, sobre a Guiné-Bissau, “Com os Mirage sul-africanos a quatro minutos”, editados no Brasil, e “Coração Forte” (Edições Dinossauro, Lisboa, 1995).
Em Porto Alegre vimos “O Grande Bazar”, “Nhinguitimo”, “Colheita do Diabo”, “A Ilha dos Espíritos”, “Marracuene”, “Hóspedes da Noite”, “Desobediência”, “A Árvore dos Antepassados”, “Acampamento de Desminagem”, “Comboio de Sal e Açúcar”, “Virgem Margarida”, “Night Stop” e “Mãos de Barro”.
Todos os filmes estão disponíveis no Youtube. Recomendo!
A seguir, uma pequena sinopse de cada um.
– Marracuene (1991, Moçambique-Alemanha-ReinoUnido, 43min, documentário). Em uma vila abandonada pelos moradores, símbolo de um país destruído pela guerra, à noite os habitantes fogem da morte e se refugiam na capital ou do outro lado do rio.
– A Árvore dos Antepassados (1994, Reino Unido-Moçambique, 48min, para a série Developing stories/BBC). Durante os 15 anos de guerra em Moçambique, um milhão e meio de moçambicanos procurou refúgio nos países vizinhos. Um deles, Alexandre Ferrão, em 1984 foi escolhido pelos tios para levar a família ao Malawi. Dez anos depois, com o fim da guerra, Alexandre decidiu que era hora de regressar para se reconciliarem com a árvore dos antepassados.
– Night Stop (2002, Moçambique, 48min, para a série Steps for the future). Elas acordam ao entardecer quando os primeiros caminhões chegam à Vila de Moatize, norte de Moçambique, quase fronteira com vários países da região. Os caminhões param diante do Montes Namuli–Rooms, pensão/bar/restaurante onde os condutores passam a noite. E para lá elas vão bem arrumadas e surpreendem com suas revelações.
– Mãos de Barro (2003, Moçambique, 50min). Ceramista, Reinata Sadimba nasceu em 1945. Dos 20 aos 30 anos participou da guerra pela independência, com o pai e o marido. Artista renomada, já expôs em vários países. O filme a segue em uma viagem à terra natal, o planalto de Mueda, terra dos Makondes, célebres escultores de ébano.
– Acampamento de Desminagem (2005, Moçambique, 60min). Os sapadores são um grupo especial de homens. Alguns combateram em lados opostos na guerra que assolou Moçambique. Outros eram civis e o trabalho na desminagem foi uma opção ao desemprego e à criminalidade. Juntos vivem períodos longos afastados das famílias, em tendas coletivas, e arriscam as vidas todos os dias.
– A Ilha dos Espíritos (2009, Moçambique, 63min). Muito antes de dar nome ao país, a Ilha de Moçambique teve papel fundamental no Oceano Índico, como ponto de escala para navegantes. No filme, moradores da ilha mostram hábitos, atividades, cultura e incluem uma conhecedora de seres mágicos que povoam o imaginário dos ilhéus.
– Hóspede da Noite (2007, Moçambique, 53min). Em 1953 foi inaugurado em Moçambique, na cidade da Beira, o luxuoso Grande Hotel, 370 quartos. Atualmente serve de residência para 3.500 pessoas que ocupam também a cave, corredores e o terraço. Algumas famílias vivem lá há mais de 20 anos, sem eletricidade e sem água.
– Colheita do Diabo (1988, Moçambique-França, 54min). “O diabo plantou na nossa machamba e não precisa de chuva para fazer a sua colheita”. A seca e a presença maléfica de bandidos ocultos na floresta ameaçam a vida cotidiana de uma aldeia defendida por cinco veteranos da guerra de independência.
– O Grande Bazar (2006, Moçambique, 55min). Num mercado africano dois meninos, com vivências e objetivos diferentes, se encontram. Um procura trabalho para readquirir o que lhe foi roubado e voltar para casa. O outro faz de tudo, até roubar, para não viver com a família. Mesmo diferentes, ficam amigos e enfrentam o adversário comum.
– Desobediência (2002, Moçambique, 92min). Rosa, camponesa moçambicana, é acusada de causar o suicídio do marido. Em uma carta descoberta durante as cerimônias fúnebres, lida diante dos presentes, o suicida determina que os cinco filhos do casal sejam entregues ao seu irmão gêmeo, para não viverem com a mulher que arruinou sua vida. Para provar a inocência, recuperar os filhos e os poucos bens, Rosa submete-se a dois julgamentos: O primeiro com um curandeiro, o segundo num tribunal.
– Virgem Margarida (2012, Moçambique-França-Portugal-Angola, 83min). No final da guerra de 1975, as prostitutas de Moçambique são enviadas para um centro de reeducação, na selva. Ficam sob a guarda de mulheres militares que têm métodos para transformar prostitutas em “mulheres novas”. Entre elas, está Margarida, camponesa adolescente, virgem, enviada por engano para a reeducação.
– Comboio de Sal e Açúcar (2016, Portugal, Moçambique, França, África do Sul, Brasil/RS, 88min). Em plena guerra civil, o comboio que liga Nacala ao Malawi é a única esperança para centenas de moçambicanos garantirem a subsistência das famílias. Entre eles estão Mariamu, viajante frequente; Rosa, enfermeira que vive a realidade da guerra pela primeira vez; o idealista tenente Taiar; o brutal alferes Salomão e o comandante Sete Maneiras, dotado de poderes mágicos.
– Nhinguitimo (2021, Moçambique, 23min). Sul de Moçambique, 1960. Nas noites quentes da vila do vale fértil do Rio Incomati, os homens reúnem-se na cantina de Rodrigues, dividida em duas partes. Uma com balcão frigorífico, mesas e cadeiras é para brancos e chefes da administração colonial. A outra, sem conforto, é para trabalhadores agrícolas e jovens moçambicanos, frequentada também por prostitutas.
Foto da Capa: Comboio de Sal e Açúcar – Licinio Azevedo Foto: Divulgação