Jornalista, escritor, roteirista, produtor e diretor de cinema, Licínio Azevedo é gaúcho e vive em Moçambique desde o final dos anos 1970. Ganhou o mundo? Ou o mundo ganhou Licínio? Todos nós ganhamos! E a prova disso está na instigante retrospectiva da sua filmografia em cartaz na sala Eduardo Hirtz da Casa de Cultura Mario Quintana. A mostra abriu no dia 2 de dezembro e segue até o dia 10, sempre às 19h. Licínio está em Porto Alegre, acompanha as sessões e fica disponível para conversar com o público. Uma trajetória que me emociona muito pelas situações precárias e perigosas que encarou para trabalhar, pela pesquisa, pela relação que cria com as comunidades e pelo olhar abrangente e humano que seus filmes revelam.
Treze filmes integram a mostra Um Gaúcho em Moçambique: Licínio Azevedo.
Os documentários “Marracune” (50min, 1990), “A árvore dos Antepassados” (48min, 1994), “Night stop” (48min, 2002) “Mãos de barro” (50min, 2003), “Acampamento de desminagem” (60min, 2005), “A Ilha dos Espíritos” (63min, 2009) e “Hóspedes da Noite” (53min, 2007).
As ficções “Colheita do Diabo” (54min, 1988), “O Grande Bazar” (55min, 2006), “Desobediência”, (92min, 2002), “Virgem Margarida” (83min, 2012), “Comboio de Sal e Açúcar” (88min, 2016) e “Nhinguitimo” (23min, 2021).
Nos dias 2, 3 e 4 de dezembro foram exibidos “O Grande Bazar”, “Nhinguitimo”, “Colheita do Diabo”, “A Ilha dos Espíritos”, “Marracune” e “Hóspedes da Noite”.
Na tela, um trabalho coletivo, a partir das relações que o diretor estabelece com as comunidades para a produção dos filmes
“Não foi fácil fazer a curadoria do trabalho de Licínio e escolher os filmes”, afirmou o produtor cultural Carlos Caramez que, para viabilizar o projeto, contou com o auxílio do cineasta Glênio Póvoas, professor de cinema da PUC/RS, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo/1999 e doutor em Comunicação Social pela PUC/RS/2005, de Mônica Kanitz, coordenadora de programação da Cinemateca Paulo Amorim, e de Zeca Brito, diretor do IECINE. A mostra contou também com o apoio do professor, escritor e editor da revista Parêntese, Luis Augusto Fischer e do jornalista Roger Lerina. A direção de produção é de Cláudio Fagundes, da Cubo Filmes.
Licínio Azevedo nasceu em Novo Hamburgo em 27 de maio de 1951 – por acaso, segundo ele. Sua mãe estava de passagem pela cidade. A família vivia em uma fazenda em Carapuça, interior de Taquari. Em Porto Alegre, estudou no Colégio Júlio de Castilhos, cursou um ano de Direito e foi para o Jornalismo. Formou-se em 1975 na PUCRS. Ainda na faculdade, começou a trabalhar como repórter policial no jornal Zero Hora, até ser convidado pelo jornalista Jefferson Barros para ser editor de polícia na Folha da Manhã. Vivíamos uma ditadura militar muito cruel no Brasil, mas o jovem editor não se intimidava. E ao investigar o titular do DOPS na época, delegado Pedro Sellig, acusado de tortura e homicídios, sofreu uma perseguição desmedida e precisou deixar o Rio Grande do Sul.
Durante as guerrilhas do Exército Revolucionário do Povo/ERP, fundado em 1969, e dos Montoneros, organização de esquerda criada em 1970 com o propósito de estabelecer o socialismo na Argentina, Licínio esteve por lá. Depois, passou pelo Peru, Bolívia e Guatemala, entre outros países da América Latina. Atento e inquieto, envolveu-se com questões sociais e cobriu movimentos de libertação popular. Ao voltar para São Paulo, publicou no Jornal da Tarde, em parceria com o jornalista Caco Barcellos e com a fotógrafa Avani Stein, uma série de reportagens sobre o terremoto de 4 de fevereiro de 1976 na Guatemala. Na capital paulista, colaborou também com a imprensa independente que, por ousar investigar e publicar o que os jornais tradicionais não publicavam, sofria uma censura implacável. Editou publicações como “Versus”, “Movimento”, “Repórter”, “Opinião” e o “Coojornal”, de Porto Alegre. Faróis em uma época de total sonegação sobre os bastidores da ditadura que sufocava o país. Por conta disso, em 1980 ganhou o Prêmio Wladimir Herzog com a reportagem “Valeu a pena voltar?”, publicada no “Coojornal”.
Pouco depois, novamente no exterior, trabalhou em Portugal e na Guiné Bissau no jornal “Nô Pintcha”. Sua ligação com Moçambique começou em 1978 quando foi para a capital, Maputo, convidado pelo cineasta Rui Guerra. Participou da criação do Instituto Nacional de Cinema e conviveu com visitantes ilustres como Jean Rouch, Jean-Luc Godard, José Celso Martinez Correa, Murilo Salles, Guel Arraes e Santiago Alvarez. Nesse período, Licínio começou a escrever textos e roteiros para documentários, caso de “Mueda – Memória e Massacre”, de Ruy Guerra/1979. Seu livro “Relatos de um Povo Armado”/1983, sobre episódios da guerra pela independência, serviu de base para o roteiro de “O tempo dos Leopardos”/1985, primeiro longa-metragem de ficção moçambicano, dirigido pelo iugoslavo Zdravko Velimirovic. Já radicado em Maputo, fundou a primeira produtora de cinema moçambicana, Ébano Multimídia, responsável por documentários premiados no mundo.
Outro momento significativo na sua trajetória foi o lançamento de “Acampamento de desminagem”/2005. Apontado como um dos seus documentários mais contundentes, o filme provoca uma reflexão sobre as consequências da guerra civil que assolou Moçambique por duas décadas e que resultou em miséria generalizada e minas espalhadas por todo o território. Licínio sempre esteve ao lado das lutas e das ações protagonizadas pela Frente de libertação de Moçambique/FRELIMO, de orientação marxista. A independência dos portugueses aconteceu em 1975, mas o acordo de paz só foi assinado pelas duas partes em 1992. Seus filmes contam essa história e estão impregnados de vivências e acontecimentos de um tempo difícil.
O cineasta gaúcho mais africano de que se tem notícia
Ao optar por ficar na África, Licínio ganhou uma segunda pátria e construiu uma carreira sólida em Moçambique. Hoje é conhecido como o cineasta gaúcho mais africano de que se tem notícia. Ao misturar realidade e ficção, leva para a tela não atores e seus dialetos originais, respeitando vidas e identidades. A partir do olhar atento de um guerrilheiro cultural, um repórter talentoso e um contador de histórias de rara sensibilidade, seus filmes são contundentes. Roteirista e diretor premiadíssimo, já produziu mais de 12 longas-metragens e dezenas de documentários de média e curta-metragem. Em 1999 ganhou o Prêmio FUNDAC/Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural/Maputo pelo conjunto da sua obra. Em 2015 recebeu uma homenagem da Cinemateca Portuguesa com o ciclo “O Espírito do lugar: Licínio Azevedo, cineasta de Moçambique”. Ainda em 2015, teve uma retrospectiva do seu trabalho na Alemanha, no 39º Französiche Filmtage.
Seu romance “Comboio de sal e açúcar”/1997, ambientado na guerra civil de Moçambique, foi dirigido por ele para o cinema e lançado em 2016 no Festival de Internacional de Cinema de Locarno/Suíça, um dos mais antigos e importantes festivais do mundo, com projeção na Piazza Grande. “Comboio de sal e açúcar” marca também a primeira coprodução com o Brasil e com uma produtora gaúcha, a Panda Filmes, de Beto Rodrigues. O longa foi escolhido para representar Moçambique na categoria de Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia do Oscar de 2018, a primeira vez em que uma produção moçambicana foi submetido ao Academy Award. É o segundo filme da Trilogia “Amor e Guerra”, iniciada com “Virgem Margarida”. Licínio é o único cineasta que venceu por três vezes o Festival Internacional de Produções Audiovisuais/ FIPA, de Biarritz/França, o mais importante evento europeu de obras para televisão. Ganhou duas vezes o Troféu de Prata para filmes de ficção e uma vez o de Ouro para grandes reportagens.
Programação da Sala Eduardo Hirtz a partir desta terça-feira, dia 6
6/12/Terça-feira – Desobediência (2012) 1h32m
7/12/Quarta-feira – A árvore dos Antepassados (1994) 50m / Acampamento de Desminagem (2005) 60m
8/12/Quinta-feira – Comboio de Sal e Açúcar (2016) 1h33m
9/12/Sexta-feira – Virgem Margarida (2011) 1h30m
10/12/ Sábado – Nigth Stop (2002) 52m / Mãos de Barro (2003) 50m