A humilhação pública tem sido um mecanismo de controle social desde que o mundo é mundo. Da perseguição aos católicos na crucificação de Cristo à Inquisição da mesma Igreja Católica doze séculos depois, que eliminava supostos hereges e feiticeiros queimando-os em praça pública. Das mulheres francesas que tiveram alguma relação – não íntima, necessariamente – com os alemães, durante a ocupação na Segunda Guerra Mundial, e foram obrigadas a desfilar nuas e carecas pela rua depois da retomada, à Justine Sacco, uma relações públicas norte-americana mais recentemente.
Quando se imaginava que a sociedade cada vez mais humana e politicamente correta havia colocado tais práticas no arquivo morto, começaram a se criar novas estradas velozes para escoar a ira de hordas, unidas aleatoriamente, para para promover o massacre coletivo da honra alheia. Justiça? Oi?
Em 2013, Justine tinha apenas 170 seguidores no Twitter e postou uma piada cujo objetivo era zombar da ignorância americana em relação à África. Embarcou num voo para a Cidade do Cabo, na África do Sul, e 11 horas depois, ao chegar, descobriu que a sua vida já estava arruinada. As pessoas não tinham compreendido a ironia e Justine virou vítima de uma onda de massacre coletivo acusada de racismo, como gancho para a sua desqualificação pessoal e profissional completa. Perdeu o emprego, sumiu da vida. Hoje, é exemplo do verbete “online shaming”, no Wikipedia.
Humilhados
Justine é um dos cases do livro “Humilhados: como a era da Internet mudou o julgamento público“, do escritor galês Jon Ronson. Como jornalista, Ronson não é pretensioso nas suas análises, mas vai, no decorrer da obra, desvendando um novo universo de pessoas comuns, que nunca tiveram poder ou voz, e que de repente se libertam e se sentem legitimadas para julgar furiosamente seja lá o que for, protegidos por uma tela de computador, na intimidade de onde estiverem.
“Um floco de neve não se sente responsável pela avalanche”. E o floco de neve pode ser esse pacato e bonachão colega de trabalho, que está aí agora ao seu lado. Num instante e por alguns minutos, ele pode se transformar num monstro virtual, engrossando as fileiras de exércitos de violentos detratores. A seguir, vai para casa, beija a mulher e conta histórias de fadas para as crianças dormirem. Não aconteceu nada, afinal.
Sociedade Líquida
O pensador Zigmunt Bauman, recentemente falecido, criou o conceito da sociedade líquida. Não falava do mundo virtual, mas falava. A utopia é uma perspectiva aspiracional a partir da crítica ao presente, capaz de mobilizar grupos e transformar a realidade. Para Bauman, o fim da utopia foi a perda do caráter reflexivo e da noção de progresso coletivo compartilhado.
Não há mais projetos de longo prazo, logo, não há objetivos. A sociedade, virtual ou não, se move de um lado para outro a cada dia. Como bandos de pássaros no céu, dançando de um lado para outro. Estamos no presente, a perspectiva do futuro é apenas uma projeção da vida individual.
Psicologia das massas
Os processos de linchamento e humilhação virtuais são protagonizados por um “efeito manada”, onde as pessoas anulam as suas individualidades para se mover dentro e protegidos pelo grupo. Ronson resgata a história de Gustave Le Bon. Em 1895, o médico francês, pensador medíocre em busca de fama, depois de várias tentativas frustradas, publicou “Psicologia das Massas”.
Nascia o primeiro estudo sobre como pessoas em multidão se transformam em micróbios ou grãos de areia que o vento agita de acordo com a sua vontade. Le Bon, enfim, entrava para a história sem sequer sonhar que um dia viria a existir uma rede capaz de juntar manadas instantaneamente, em qualquer lugar do planeta.
Surfando com walking deads
Ao contrário de nos libertar como sonhávamos, a originalmente libertária e caótica Internet caminha mesmo para um paraíso fascista, um monstro coletivo que controla nossos passos mentais, emocionais, intelectuais e físicos. Uma manada controlada e fora de controle ao mesmo tempo. Nasce uma nova e bizarra aliança coletiva: a ganância de gigantes corporações online com as frustrações individuais.
Veículos de comunicação, por seu turno, as televisões em particular, atônitas com o fim do modelo tradicional de seus negócios, tentam surfar nas mesmas ondas dos walking deads virtuais. Reduzem a complexidade dos conteúdos para alcançar a identificação com essas massas e, frequentemente, retroalimentam as manadas desgovernadas, conservadoras, moralistas, preconceituosas, xenófobas, cruéis, intransigentes e imediatistas. E a pista livre também alimenta o surgimento de sites, blogs e portais aventureiros e caça-níqueis, sem compromisso com qualidade e veracidade dos conteúdos, como sempre defendeu o bom jornalismo.
Big Brother
Enquanto isso, pessoal e ingenuamente, comemoramos felizes o fim do anonimato individual, a possibilidade de nos tornarmos famosos mesmo sendo pessoas comuns, com méritos comuns. E colocamos nossa alma em exposição pública, sob julgamento, seja em forma de opinião seja, de selfies e belfies. Caminhamos, enfim, para o encontro da realidade com a ficção.
O Big Brother, que não é o programa da Endemol, da Globo, mas uma expressão cunhada por George Orwell no profético livro “1984”, era um ente onisciente e onipresente, auxiliado por um Ministério da Verdade, pela Polícia das Ideias e todos espiados por teletelas.
Na verdade, a realidade é mais pródiga, como sempre. Nós todos já integramos o Ministério da Verdade e a Polícia das Ideias. Algoritmos já permitem que Irmãos monitorem Irmãos. E, assim, perplexos, quem tem algum juízo já está a desenvolver um extraordinário autocontrole, o mais primitivo, atávico e puro instinto de sobrevivência. Tudo para não virar o próximo alvo.
Mas você aí e eu aqui. Nem todos somos suscetíveis ao contágio emocional das manadas. Somos? Talvez também vejamos nascer uma Resistência. Como em “1984”, sempre haverá alguém tentando fugir ao nosso controle. Winston, personagem principal, não resiste a um sentimento transgressor e ousa se entregar à paixão. Surge a centelha da rebelião. Aperte o cinto, coloque o encosto na posição vertical, já estamos vivendo no “Admirável Mundo Novo” (Aldous Huxley, 1894/1963).