Linhas de cura: Rap, negritude e outras formas de (re)existir
Tá vivo irmão
tá vivo irmã
A cada rap a cada linha que eu escrevo eu quero sentir que livro
A cada 23 minutos mais uma mulher mais um jovem preto vivo
Não sou dotada de semântica
Não domino as matemáticas
Mas sigo correndo num rio cheio de cobras
E aqui ser feliz é tática
O futuro do mundo não está nas coisas
que me falar de ti
me fala quem tu é
e não o que tu tem
Fazer poesia e juntar as palavras pra fazer vocês se sentirem mais leves
Mas tudo isso só vai fazer sentido mesmo
Se cada um e cada uma sair por aquela porta e dizer pra vida
Eu vou viver
Eu vou ser um ser humano melhor
Por que o futuro meus amigos
Não está nas matérias e ele esta nosso comportamento
Quer falar de inovação
Inovação é não ver ninguém passando fome
Frio
Nem sede
por que amor é ação
O resto é um loop infinito de ilusões que a meritocracia inventou pra se sentir útil
saímos dos porões, armários e cozinhas
e pro lixo eu não volto nunca mais
vamos meter o dedo na cara do destino e dizer
hoje eu vou ser feliz
nem que seja a força
hoje eu vou ser feliz
e que o mundo nos ouça
hoje eu vou ser feliz
e que se abram as portas e as oportunidades
por que se não nós vamos derrubar
Linhas de cura fala de vida
do espaço de esperança em um tempo de doença
linhas de cura são os rap e as poesias que escrevo
minha negritude
meu afeto e garra de viver
que neste momento cada um e cada uma desmanche os nós e façamos um laço de amor e de esperança
que aqui seja plantado o futuro e que esse presente seja hoje
paz e bem pra todos nós
Linhas de cura
Minha apresentação abre com poesia e negritude, pois é dessa forma que me estabeleço no mundo. Às vésperas de um lançamento de um projeto musical novo, chamado “Linhas de cura: rap, negritude e outras formas de existir” chego nesse espaço sagrado de palavras chamado Sler para compartilhar vivências. Chego com tom de poeta, mc e educadora popular de refletir sobre arte negra, feminina e periférica.
Em uma das tardes áridas, aqui no Morro, em meio a nossas rodas de conversas, (apesar das regras de isolamento, crianças de vila não fazem isolamento social), entre uma pergunta e outra, tradicionalmente feitas por eles, observo nossos pés empoeirados, todos de chinelos; percebo que um dos meninos, com seus 8 ou 9 anos, estava com o chinelo maior que o pé dele. Pergunto a ele o que aconteceu. Ele timidamente responde que estava com o chinelo da mãe. Estávamos montando o bazar, para arrecadação de fundos para nossa obra no Galpão, e em meio a tantas peças havia um chinelo infantil. Eu cresci ouvindo que “pé de pobre não tem número”, minha mãe e muitas mulheres da comunidade trabalhavam de domésticas e levavam pra casa tudo o que recebiam de doação. Que bom que o chinelo serviu nele.
Relato essa imagem sobre um espaço tempo do cotidiano aqui na Vila, uma história que compartilho algumas vezes, pois eu já fui essa criança, e nela cabe o mundo, e principalmente o movimento de uma periferia pulsante que faz arte a partir da ausência. Escrever sobre a perspectiva também de linhas de cura apresenta em mim ações de pertencimento desse lugar, um pedaço de Porto Alegre. Das festas de sonoridades, da produção e exibição de produtos visuais às vivências coletivas. Do colorido dos grafites nos muros aos pagodes com churrasco nos pátios. São configurações de encontros, percursos e táticas que habitam um mesmo território de pertenças na complexidade da vida comunitária e periférica que encenam as reflexões de uma produção de arte. A palavra cura! Nesse exercício de pensar a arte como uma ferramenta de resiliência, registro na história que estamos machucados. Vivemos em um contexto de doença e o medo paralisa.
Toda vez que um MC ergue sua voz, buscamos cotidianamente caminhos de cura através de nossas práticas performativas nesses espaços que vão além das contribuições materiais, construindo uma estética própria e desenvolvimento de uma consciência coletiva. Ubuntu meus manos e manas!
Fazer rap é apresentar um desenvolvimento criativo através da presença das práticas performativas em muitos contextos em sua maioria de pobreza, e faz uma tentativa de criar experiências positivas , buscando intensidades através da arte da palavra rimada, ritmada em um território marcado pelo contexto de pobreza e pela hierarquia de valor, preenchendo lacunas geradas pela invisibilidade de saberes que a norma estabelece para estes territórios.
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*Negra Jaque é artista, produtora cultural, mestranda em educação na UFRGS e Coordenadora do Galpão Cultural-casa de hip hop