A grande contista dinamarquesa Karen Blixen (autora de Uma fazenda africana, livro que inspirou o filme Entre dois amores) relatou, certa vez, uma estória que tentarei reproduzir aqui.
Ela saíra de sua fazenda a cavalo (ela vivia no Quênia, onde passou 25 anos) com dois ajudantes para buscar madeira numa floresta distante. Durante o corte das árvores um dos ajudantes se feriu gravemente e ficou preso sob um pesado tronco. Ela ordenou ao outro ajudante que pegasse seu cavalo e partisse em busca de socorro. Durante este tempo ela ficou conversando com o rapaz ferido e dando-lhe torrões de açúcar (destinados a energizar os cavalos) o que terminou por aliviar momentaneamente a dor do infeliz. Terminados os torrões a dor voltou. Procurando tabletes no bolso, Blixen terminou por encontrar um envelope que ela guardava com especial zelo e carinho.
Tratava-se de uma carta que lhe fora enviada pelo rei da Dinamarca, em agradecimento a uma pele de leão que a nossa contista lhe presenteara. E foi ouvindo atentamente a leitura de seu conteúdo que a dor do ajudante ferido foi sendo aliviada e, finalmente, o socorro chegou.
Começou a se espalhar pelos arredores a lenda de que a tal carta do Rei tinha poderes milagrosos de analgesia e, vez em quando, alguém vinha solicitar a Blixen a missiva para aliviar o sofrimento de um desgraçado. Passado algum tempo o documento tornara-se ilegível, manchado de sangue, de secreções, amarrotado… Isto não apenas nunca incomodou a contista, como ela terminou por tirar uma “lição” surpreendente: era exatamente isto que ela esperava de sua literatura, que aliviasse a dor das pessoas!
Num debate que assisti na TV francesa entre o crítico cultural George Steiner e Roberto Begnini (autor de “A Vida é Bela!”), Begnini se mostrava constrangido e decepcionado com a recepção de seu filme pela comunidade judaica europeia, como se ele estivesse fazendo gozação com o Holocausto. Quando Steiner, que é judeu, tomou a palavra, consolou-o dizendo que não compreendia tal reação, afinal, dizia, o filme não tratava do nazismo: tratava de literatura! Ninguém entendeu…
Steiner explicou. A única maneira que tinha um pai prisioneiro de um campo de extermínio, de salvar seu filho, era “fabular”: imaginar uma estória que pudesse ter sentido e tornar suportável o inefável sofrimento que os afligia, dizendo-lhe que tudo não passava de um jogo e a recompensa final, para o vencedor, era um tanque de guerra! Sem esta “fuga” do real que toda fábula (um gênero literário) permite não haveria nenhuma possibilidade de salvação.
Acho que há uma relação constante entre literatura e dor, mas não na acepção corriqueira forjada pelo romance moderno, expressa em personagens como Bovary ou Raskolnikov: precisamos de literatura porque não podemos suportar esta aderência rotineira ao cotidiano, à facticidade da vida ordinária. Quando Antônio Cândido falou do “direito à literatura”, como direito à transcendência, a ir além do pão de cada dia e alimentar o espírito com a imaginação e o sonho, sem o quê não nos constituímos como homens e permanecemos no reino da pura necessidade, ele queria dizer isto: num tempo cada vez mais dominado pelo “real” (pragmatismo), a literatura permite pensar que “talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado!”, um antídoto ao presentismo e ao realismo míope.
Para desgosto de meus amigos marxistas, diria que precisamos todos de… “alienação”!
Foto da Capa: Freepik AI Generated
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