“Fica acertado, caro leitor, que ao começar a ler este artigo, você suspenderá suas crenças e convicções e, por algum tempo, acreditará na existência de dragões que voam e cospem fogo, em bruxas cruzando os céus em vassouras, em titãs que sustentam a Terra nos ombros…, e uma vez terminada a estória, você pode voltar a acreditar em empreendedorismo, competências sócioemocionais, capital humano… Fique à vontade”!
Quando Clarice Lispector começou seu “A aprendizagem ou o livro dos prazeres” com uma… vírgula (ou terminou livros com um simples dois pontos!) ela estava nos dizendo que a literatura promovia uma suspensão temporária da vida (havia Vida antes da “vírgula”, antes da leitura; haverá uma Vida após os “dois pontos”): na literatura, nós saímos do cotidiano para viver vidas vicárias, invadir a consciência de personagens, penetrar nos “arcanos do inteiramente outro”, visitar invisíveis cidades, experimentar perigos inimagináveis e sair ilesos, chorar a morte de uma personagem que amamos. Sem esta “suspensão” nossa vida seria apenas um evento biológico, simples sobrevivência! Há, pois, perguntas que a Literatura quer responder: você está satisfeito com a normalidade, as expectativas, os prazeres que a vida tem te oferecido? Você está feliz com aquilo que fazem de você, ou com a realidade em que você vive? Com a cultura, as crenças, as esperanças que você herdou ou alimenta? Diferentemente do que pode nos dizer a Sociologia ou a Física, que tentam “explicar” o mundo natural ou social, a Literatura não nos oferece nenhuma “explicação”: não terminaremos um romance nem mais sabidos nem mais competentes. Teremos apenas contemplado a fragilidade de todas as explicações, de todas as crenças, de todas as esperanças!
Imaginemos que a Educação pudesse se inspirar na Literatura e não mais nas linguagens emprestadas da Sociologia ou da Psicologia. O que aconteceria? Nós conheceríamos, claro, as causas da opressão, mas saberíamos, ainda mais, quais são os imensos riscos da liberdade; saberíamos que a Razão não nos salvará e desconfiaríamos que talvez haja algo que o homem não suporta: as duras exigências de sua própria “humanidade” que a educação tenta promover! A educação ora se voltou para o “como se aprende”, ora para o “como se ensina”, nunca para o “como se vive”! É por isso que a Literatura raramente participa da Formação do Professor: ela poderia desviar o olhar dos futuros mestres para o EXTRAORDINÁRIO!
Sempre supomos que “Gosto não se discute!”, mas toda vez que dizemos -“Veja que bela paisagem!”, esperamos intimamente que os outros concordem conosco, e se alguém diz -“Acho este lugar horrível!”, isto provoca certo mal-estar, como se procurássemos, a partir de nosso gosto particular, alcançar um nível qualquer de universalidade, de “objetividade”: no fundo gostaríamos que todos concordassem com a beleza daquela paisagem. No ensaio “A arte do romance”, Milan Kundera se pergunta a que tipo de verdade a Literatura pode chegar, e sua conclusão é que, qualquer que ela seja, não será nunca do tipo “apodítica”, como as verdades matemáticas (“universais”): haverá sempre algo de indecidível, aberto aos variados pontos de vista.
Essas três observações – o acordo tácito de que “existem dragões”, o ponto de vista particular e a tentativa de sua universalidade – mostra que o gosto não é tão subjetivo assim (ou não poderíamos falar de “bom” ou “mau” gosto!) e que a partir de um ponto de vista subjetivo é possível ir mais longe numa possibilidade de acordo entre as pessoas (intersubjetividade). Aquilo que chamamos de “espaço público”, onde os homens expõem seus pontos de vista políticos e os disputam com outros pontos de vista, tem algo de semelhante ao que acabo de dizer: eu também gostaria que minha visão sobre o mundo ganhasse a adesão dos outros mediante o uso de uma razão argumentada (não da força!), ouvindo e sendo ouvido, vendo e sendo visto, colocando-me no lugar dos outros, pensando, julgando e decidindo. Mas sempre aberto à possibilidade de um “melhor argumento” (Habermas)! Nós sempre imaginamos que a constituição do espaço público é uma questão exclusivamente “política” e nunca supomos qual poderia ser a função do “estético” (da Literatura, por exemplo) nesta construção.
Se o espaço público não é o lugar da “verdade apodítica” e, sim, o do ponto de vista argumentado (a “opinião” que Platão tanto detestava), em que o ponto de vista pessoal pode vir a se tornar “opinião pública” (que não é a soma das opiniões particulares e nem sempre leva a bom porto!), então talvez a Literatura nos ofereça um caminho para a educação da PERSONALIDADE DEMOCRÁTICA (J. Dewey): aquela capaz de falar, de se colocar no lugar do outro, de pensar e julgar o que nos acontece para tomar decisões substantivas (atentas às consequências). Há, pois, uma relação entre o estético e o político que vai muito além da simples politização do estético (Realismo Socialista) ou da estetização da política (Nazismo), e que pode fundar uma vida pública. É minha aposta!
Fica acertado, leitor, que ao terminar este artigo, você voltará para seus afazeres habituais e deixará, momentaneamente, de acreditar em dragões!
Ilustração da Capa: Freepik | AI-Generated
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