Cresci em uma cidade sem livrarias. Ou melhor, talvez eu devesse dizer que cresci numa cidade sem livrarias de fato, porque havia em nosso burgo naqueles longínquos anos 70 e 80 dois estabelecimentos que ostentavam esse nome, mas na prática eram papelarias, onde minha mãe nos levava todo início de ano para dar conta da lista de material pedido pelo colégio: cola (chamávamos informalmente de Tenaz), resmas de papel, lápis, borracha, apontador, estojo e um número para mim hoje incerto de “folhas matrizes” para ser usado para fazer cópias em mimeógrafos (não tenho tempo neste texto para explicar em minúcias esses dispositivos de baixa tecnologia, então sugiro aos meus hipotéticos leitores jovens, se é que existem, que deem um Google).
Resumindo: nessas duas livrarias da cidade da minha infância, os únicos livros disponíveis (e só por encomenda, ainda por cima) eram obras didáticas como A Conquista da Matemática, de José Ruy Giovanni e Benedito Castrucci, ou Comunicação e Expressão em Língua Portuguesa, de Leodegário de Azevedo Filho. Assim, a experiência fascinante que eu poderia ter tido com livrarias na juventude eu só fui ter mesmo com a biblioteca pública da cidade, localizada em um casarão histórico na praça central do município e com um acervo que, olhando hoje, me parecia algo defasado, mas que era bom o bastante para que eu conhecesse obras como Dona Anja, de Josué Guimarães; Histórias de Amor, de Bioy Casares, Aqui e em Outros Lugares, de Oswaldo França Jr. ou Os que Bebem como os Cães, de Assis Brasil (e que eu peguei na biblioteca aos 16 anos porque confundi com Cães da Província, de Assis Brasil, que estava recomendado nas leituras da UFSM daquele ano. Não era nem o mesmo livro nem o mesmo autor, um, Luiz Antonio de Assis Brasil, era do RS, o outro, Francisco de Assis Almeida Brasil, era do Piauí, algo que só fui entender quando cheguei em casa e comecei a ler o livro).
O fascínio
A questão é que, mesmo não as tendo à disposição naquele período, as livrarias estavam lá esperando por mim quando pude finalmente ter contato com elas, depois de me mudar para Porto Alegre, também aos 17 anos (parando pra pensar, aconteceu coisa paca nos meus 17 anos, que coisa). Uma das primeiras coisas que fiz na cidade foi, mantendo o hábito, abrir uma ficha na Biblioteca Pública do Estado (a porta do setor de empréstimo dava para a General Câmara, não sei se ainda se entra por ali depois da reforma). E logo na sequência descobri a maravilha das livrarias e sebos da Rua da Praia. Naquela época, a Livraria do Globo ainda estava instalada no prédio grande e bonito da Andradas. Conheci também a Beco dos Livros e a Martins Livreiro, cujas salas amplas com cheiro de papel mofado se tornaram cenário inescapável do meus primeiros anos em Porto Alegre
Eu passava por essas livrarias e outras ainda existentes no centro naquela época praticamente todos os dias, embora não comprasse quase nada, minha grana era muito curta. Era mais uma espécie de viagem de superfície por um território para mim ainda fascinante e inexplorado. Eu não tinha como comprar os livros, mas apenas estando ali eu tomava conhecimento de que muitos deles existiam. Anotava na memória títulos que talvez depois eu achasse em alguma biblioteca. Nisso os sebos eram valiosos. Eu não tinha grana para comprar aquela edição antiga de Phutatorius, de Jaime Rodrigues, que um dia vi na Livraria Aurora, mas achei depois, na Biblioteca Pública. Não tive grana para comprar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, que vi de passagem numa estante da livraria Cosmos, mas depois o encontrei na biblioteca da faculdade.
Pontos de encontro
Para os nascidos nesta era de informação disponível com um clique, talvez todo este jogo pareça complicado e infrutífero, mas o fato é que na época para conhecer livros e autores esse era um caminho. Não havia ainda topado com a noção de “paideuma” cunhada por Pound e tão cara aos concretistas que naquela época, eu ainda não conhecia a noção de deixar um cânone organizado para a própria geração somente com aquilo que vale a pena (não andei procurando, mas me dei conta escrevendo agora de que esse critério amparado na exclusão radical do que “não serve mais” foi feito para entrar em choque com o novo espírito do tempo que busca, ao contrário, uma ideia mais pulverizada e inclusiva de cânone, ou mesmo a sua implosão. Se souberem onde as duas facções estão trocando farpas e possíveis porradas, me avisem, adoraria assistir, de longe, de preferência).
Livrarias são, historicamente, tradicionais pontos de encontro e de criação de uma comunidade literária. Shakespeare and Company, em Paris, servindo como o ponto de refúgio para mais de uma geração de expatriados ao longo do século XX. De Henry Miller, Anaïs Nin e James Joyce na primeira metade do século a Allen Ginsberg, William Burroughs ou William Saroyan na segunda metade. A Garnier da Rua do Ouvidor, no Rio, na qual Machado de Assis batia ponto cercado de escritores mais jovens que o reverenciavam como mestre. A própria Globo que, antes de ser aquela livraria já completamente transformada que eu conheci nos anos 1990, foi a editora hegemônica do Estado, com Erico Verissimo como diretor editorial e na qual é dito que Mario Quintana às vezes sentava-se a uma mesa de canto traduzindo Proust ao correr da pena.
A Porto Alegre em que vivi também teve esse tipo de livraria, por um certo tempo. Há cerca de uns 20 anos, casas como as saudosas Palavraria e Sapere Aude foram o centro de uma então vibrante vida literária (que eu não frequentei muito, confesso, porque não sou muito de “colar no rolê”, como curtem falar os mais jovens). Havia oficinas, palestras, cursos, eram espaços em que não apenas se vendiam livros, mas se tentava ampliar uma discussão sobre ele, garantir que as pessoas saíssem de lá um pouco como eu mesmo saía das minhas peregrinações pelas livrarias de Poa nos anos 1990: de mãos vazias mas com a cabeça cheia, tendo contato com a existência de um mundo de livros e leituras que eu ainda não conhecia e estava ávido por conhecer.
Mudanças
Sei que estou falando de um nicho específico do setor livreiro como um todo, o de livrarias com uma proposta que hoje parece ter se perdido, ou se metamorfoseado, digamos. Desde a minha infância, houve mudanças significativas no cenário das livrarias enquanto campo econômico. O modelo de “megastores”, lojas com acervo mastodôntico e grande diversidade de produtos – não se limitando apenas a livros, mas a discos, colecionáveis, brinquedos e um amplo catálogo de itens eletroeletrônicos e até de vestuário – foi adotado pela primeira vez na França, com a Fnac, tendo se consolidado nos anos 1970. Foi depois transplantado para o Brasil pela Saraiva, que abriu em 1996 suas duas primeiras “mega”, nos shoppings Eldorado e Ibirapuera, em São Paulo. Desde então, o modelo se ampliou e se naturalizou de tal modo que raro era o novo shopping construído no Brasil nos últimos 30 anos que não tivesse em seus planos uma mega livraria.
Dominantes a partir dos anos 1990, as megas se impuseram ao mercado seduzindo o consumidor e pressionando a cadeia do livro. Para quem comprava, o gigantismo de cada uma das lojas representava, teoricamente, uma possibilidade maior de encontrar o que procurava. Por outro lado, como encomendavam das fornecedoras grandes quantidades de produtos a cada atualização de estoque, as megas podiam exigir que as editoras oferecessem descontos maiores daqueles praticados nas menores livrarias de calçada. Isso provocou, em um primeiro momento, o dramático fechamento de lojas menores, algumas delas tradicionais, e isso eu acompanhei em primeira mão morando em Porto Alegre nos anos 1990. Cada suspiro de admiração pela chegada da Saraiva ou da Cultura escondia um lamento doído pelo fechamento de alguma livraria de calçada que não conseguiu enfrentar a concorrência.
E desde os anos 2010, há sinais claros de que o jogo mudou outra vez. Embora tenham um poder de negociação e de barateamento superiores, as megas também têm despesas dignas de seu tamanho. Isso, mais um modelo administrativo engessado e às vezes irresponsável levou as antigas gigantes a terem mais dificuldade para enfrentar o avanço da Amazon do que, veja só, as livrarias de calçada, que, como modelo, parecem se adaptar melhor aos novos tempos oferecendo uma curadoria mais especializada que a mega, com seu modelo bastantão de Leroy Merlin literária, não tem com prover.
Enquanto Fnac e Saraiva sumiram e a Cultura parece ter estagnado, quando todas foram “a cara” de um determinado modelo hegemônico nos anos 2000, Porto Alegre tem visto o surgimento de um grande número de livrarias menores com uma proposta de resgatarem o caráter histórico da livraria como ponto de encontro, ou como uma alternativa de centro cultural – Macun, Baleia, Paralelo 30, Taverna estão entre os novos espaços com essa característica, e a tradicional Bamboletras transformou o limão em uma limonada ao ser empurrada para fora do Nova Olaria mas arranjando um novo espaço com maior condições para realização de palestras, saraus e sessões de autógrafos. Não é à toa que se tornou parte do calendário cultural na Capital a FestiPoa, festival literário cujo objetivo é promover o encontro entre público e escritores nas livrarias da cidade. Podia-se até olhar para esse movimento e pensar que algo de realmente bom estava acontecendo na cidade. Há vida civilizada quando você pode fazer de uma livraria um ponto de encontro aberto não apenas a esnobes de pincenê imaginário, mas a quem quer descobrir o livro como a paixão intensa que ele é.
Agora
Esse era o panorama visível no mercado livreiro da cidade até, digamos, o início deste ano, no qual a FestiPoa encerrou uma das suas edições mais longas e produtivas. Agora, vivemos outro momento, e ele é preocupante.
Os estragos provocados pela enchente que assolou o RS durante o mês de maio se fizeram sentir com força também dentre os trabalhadores do livro. A água prejudicou livrarias, como a Taverna, editoras, como a Jambô, a Artes e Ofícios, a Libretos, a própria gigante L&PM. E provocou perda praticamente total em sebos como a Só Livros. Esqueçam a minha análise bonita dos parágrafos anteriores, ela valia para antes. Agora, a situação está expressa já na palavra que temos usado tanto desde o começo desta crise: calamidade.
Simplesmente por isso, topei participar da Feira do Livro Reconstrói RS, do Instituto Ling. Será uma feira solidária com a presença de mais de 50 expositores: editoras, livrarias, sebos, incluindo algumas das melhores casas independentes do Estado, como Arquipélago, Artes e Ofícios, Ardotempo, Besouro Box, Dublinense, Hipotética, Piu, Zouk, Leitura XXI, Libretos. Livrarias como Baleia, Calle Corrientes, Clareira, Taverna, Sebo Café Riachuelo. Programação quase totalmente gratuita, entrada franca. A ideia é oferecer uma mão no que a maioria de nós pode para um setor tão atingido fazendo o mínimo: comprar livros. Você pode fazer isso seguindo perfis nas redes um a um, mas nesse dia terá uma oportunidade de encontrar vários daqueles que precisam da sua ajuda num lugar só. Ah, sim, e isso com uma programação paralela com debates e oficinas. Vou mediar duas mesas lá, uma delas no sábado às 16h com Irka Bairros, Rafael Guimaraens e Samir Machado de Machado. Outra, às 18h, com Eduardo Bueno, o “Famoso Peninha”. Vocês podem ler a programação completa AQUI.
Será legal ver tanta gente de novo no meio dos livros. Espero vocês lá.
Foto da Capa: Reprodução do Instagram
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