Maquiavel (1469-1527), depois que foi expulso da Secretaria de Florença (uma espécie de Primeiro Ministro daquela República), preso e torturado sob a acusação de traição, ao ser solto passava os dias nas tabernas bebendo e quando, à noite, voltava para casa, “lavava os pés e penetrava na (sua) biblioteca para gozar da companhia dos mortos! E cada livro que (ele) retirava do sono silencioso de sua estante, era um autor que ressuscitava do fundo de sua tumba imaginária para conversar, antes de recolocá-lo no mesmo lugar para que pudesse continuar seu sono secular” (Décadas de Tito Lívio).
A visão que podemos ter de uma simples BIBLIOTECA pode ser extremamente expressiva daquilo que fazemos com os livros – e daquilo que os livros fazem de nós! Borges achava que uma Biblioteca era uma representação de Deus, e na sua famosa “Biblioteca de Babel” (Ficciones), “onde estavam todos os livros escritos e ainda por escrever, além de uma história detalhada do futuro”, residia, também um dilema: havia na Biblioteca um Catálogo compendiando todos os livros ali depositados. Mas alguém levantou a questão de saber se o Catálogo fazia parte da Biblioteca (e assim ela continha de fato todos os livros) ou se era um livro à parte, e assim ela não continha todos os livros e era preciso um novo Catálogo contendo aquele Catálogo, o que nos remeteria a um regressio ad infinitum: uma representação, pois, de Deus!
Quando, diante de sua imensa biblioteca, alguém perguntou a Anatole France (1844-1924) se ele já tinha lido tudo aquilo, ele respondeu; “- Você usa sua porcelana de Sèvres todos os dias?”. France queria dizer que uma biblioteca não é um depósito de livros lidos, mas uma caixa de ferramentas que usamos quando chega o momento adequado, quando precisamos “consultar” alguém sobre um problema que nos aflige, quando precisamos saber que respostas nossos ancestrais deram aos problemas de sua época, que efeito tais respostas tiveram, e de que sensibilidade é feita uma época em que os homens se defrontam uns com os outros, tentam compreender o mundo, registram suas esperanças e suas lembranças e deixam o registro disso. Ou então projetam tudo isso em “personagens”: a pobre da Madame Bovary (Flaubert), coitada, depois de ler uma lista de literatura “romântica”, viver um casamento insosso com Charles Bovary, uma desinteressante cidade do interior da França (Rouen), amantes e agiotas que a enganavam, terminou desacreditando que os livros pudessem ser a representação do mundo “em palavras crucificadas nas páginas”. Tomou arsênico e deu fim ao seu dilema entre as palavras e as coisas. Levando junto sua própria vida!
Nem Sócrates nem Jesus deixaram suas palavras pessoalmente registradas, foram outros que o fizeram (Platão e os Evangelistas Canônicos, no caso) porque acreditavam na palavra viva do “diálogo”: diálogo não é o contrário de “monólogo”; diálogo (do grego Dia Loghein) significa “travessia pela palavra”! E aquilo que atravessamos pela palavra é o próprio Mundo, com suas infinitas significações. Para ambos, era no ato de falar, com suas expressões e entonações, diante de seus interlocutores – nem sempre letrados! – que a palavra viva fazia algum sentido: ali onde cada dialogante podia fazer uso de “sua palavra” (ideia presente também em nosso Paulo Freire).
Walter Benjamin (1892-1940) em seu formidável ensaio Desempacotando minha biblioteca, diz que cada livro que ele tirava de sua estante para depositar numa caixa de papelão (em função de suas constantes mudanças de endereço), e ao abri-los ocasionalmente e encontrar uma passagem grifada ou comentada, era um pedaço de seu passado que retornava, uma ocasião para sempre perdida, um presente recebido de alguém que já se fora, ou uma simples promessa de leitura de um livro não lido: Benjamin foi outro que se envenenou com seu célebre manuscrito nas mãos (Passagenwerk) em Port Bou (França) quando soube que não conseguiria atravessar – de novo a “travessia”!- para a Espanha e fugir do Nazismo…
O fato é que foram muitos homens que acreditaram que os livros poderiam nos salvar e, talvez, acumulá-los numa biblioteca poderia significar o aumento de seu potencial soteriológico, salvacionista. Pensemos, por exemplo, em Stefan Zweig (1881-1942) em O mundo de ontem: a grande ilusão daquela geração de uma Viena finissecular que acreditou que a cultura, sobretudo a cultura letrada de padrão elevado, poderia iluminar um caminho “sem luz e sem corrimão”! Tolice: Zweig e sua esposa Lott se suicidaram asfixiados em Petrópolis quando souberam do que estava acontecendo com o judaísmo europeu sob o Nazismo. E não preciso lembrar que um livro inspirara aquele genocídio: Mein Kampf!
Havia, sim, livros que pretendiam nos salvar. Cito apenas dois deles: a Biblia e O Capital. Ambos terminaram por dividir os homens com “muros” no meio (Berlim, Jerusalém…)!
Uma biblioteca é uma forma de organizar um passado, e quando é o passado que precisa ser atacado para que a História possa ser esquecida ou manipulada, os livros são queimados. Quando os nazistas começaram a praticar os autos-da-fé (1934), a queima pública de livros, Freud disse: “Antigamente eles queimavam os autores. Hoje eles queimam as obras. Já é um progresso!”.
Tenho medo de pensar que o “progresso” vai continuar…
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