Recentemente, saiu no Jornal Nacional: “Florianópolis é a única cidade lixo zero do Brasil”. Mesmo se fosse a única, o fato de uma metrópole brasileira (e do mundo) alcançar a meta de lixo zero seria algo extraordinário. Mas a realidade não é bem essa. Florianópolis – que tem alcançado progressos notáveis não só com relação aos resíduos, mas em termos de qualidade geral da vida de seus habitantes – estabeleceu, por decreto, o prazo de 2030 para deixar de levar aos aterros de detritos 90% de toda a matéria orgânica da localidade e 60% de todo material reciclável.
Trata-se de uma meta ousada, como reconhece o superintendente de gestão de resíduos, Ulisses Bianchini, na mesma matéria do JN. Afinal, os números atuais são 40% na fração orgânica e 35% nos secos. Estão muito longe das metas. A julgar por esses dados e por uma análise melhor da situação, que veremos a seguir, Florianópolis não será lixo zero em 2030. E talvez nunca seja.
Somos uma sociedade produtora de dejetos: sólidos, líquidos e gasosos. Desde o surgimento da civilização, quando os resíduos eram em sua maioria orgânicos e biodegradáveis, até o século atual, dominado por plásticos, químicos diversos e uma miríade de materiais sintéticos, a humanidade sempre deixou rastros. Quando éramos poucos, o planeta ainda tinha condições de se regenerar. Mas hoje, com 8 bilhões de humanos gerando dejetos, esses rastros não desaparecem — acumulam-se por toda a parte.
O conceito de “lixo zero” representa uma proposta de mudança dessa realidade: repensar o consumo, reduzir ao máximo a geração de resíduos e garantir que tudo o que é produzido seja reutilizado, reciclado ou compostado. Mas será que esse objetivo é atingível? Ou estaríamos diante de uma ilusão bem-intencionada, mas ingênua?
A utopia do lixo zero
O movimento “lixo zero” tem ganhado força nas últimas duas décadas, impulsionado por ativistas ambientais, empresas sustentáveis e pessoas que buscam alternativas ao consumo descartável. O princípio básico é claro: evitar ao máximo enviar resíduos para aterros ou incineração. Pode parecer simples, mas é muito complexo.
Primeiramente, há a questão da escala. Em 2023, segundo a UNEP (Agência da ONU para o Meio Ambiente), o mundo produziu mais de 2,1 bilhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos.
Desse total, apenas 13,5% foram reciclados. O Brasil gerou mais de 80 milhões de toneladas de lixo, dos quais quase 40% ainda são destinados a lixões ou aterros irregulares, conforme o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2022 da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais).
Além disso, o lixo não é apenas aquele que vemos na lixeira. A produção industrial, agrícola e mineradora gera enorme quantidade de resíduos. Para cada quilo de lixo doméstico, há toneladas de detritos gerados ao longo da cadeia produtiva. Um exemplo: para fabricar um único smartphone, são gerados 86 kg de resíduos industriais.
A responsabilidade deslocada
Muitos programas de “lixo zero” colocam sobre os ombros do consumidor a responsabilidade pelo destino do lixo: recicle, recuse, reduza, reutilize. Sem dúvida, todos devemos nos envolver na busca de soluções. No entanto, embora a mudança no comportamento individual seja importante, ela tem efeito limitado diante de um sistema econômico que privilegia a obsolescência, o descartável e a produção e consumo em massa.
No Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010) estabeleceu a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. Ou seja, fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores e o poder público têm responsabilidade sobre como os produtos são fabricados e descartados.
Ainda assim, a logística reversa — mecanismo que obriga fabricantes e comerciantes a recolherem e dar destino adequado aos produtos após o uso — avança muito lentamente. Menos de 7% das cidades brasileiras têm sistemas de coleta seletiva eficientes.
O restante depende da atuação de catadores e cooperativas, que muitas vezes atuam em condições precárias e ineficientes.
Além disso, o que costumamos entender por “reciclagem” é um processo que não chega ao final. Muito do que é colocado nas lixeiras de coleta seletiva acaba contaminado, mal separado ou sem viabilidade econômica para reaproveitamento. Se você coloca seu lixo no contêiner para produtos recicláveis e fica com a consciência tranquila, está muito enganado. No Brasil, estima-se que menos de 5% dos resíduos sólidos urbanos são de fato reciclados.
Os resíduos invisíveis
Há ainda os resíduos que não aparecem nas estatísticas oficiais: microplásticos, resíduos tóxicos e emissões gasosas.
O microplástico, por exemplo, já foi encontrado no ar que respiramos, na água que bebemos e até na placenta humana. Ele é resultado da fragmentação de plásticos maiores e está presente em produtos de higiene, tecidos sintéticos e pneus. Uma pessoa pode ingerir até 5 gramas de microplástico por semana, o equivalente a um cartão de crédito.
Já os resíduos líquidos e gasosos, como esgoto sem tratamento e gases de efeito estufa, representam formas ainda mais difíceis de controlar. No Brasil, 47% do esgoto gerado não é tratado e acaba contaminando rios, solos e aquíferos. No contexto atmosférico, as emissões de dióxido de carbono (CO₂), metano (CH₄) e outros gases relacionados à queima de combustíveis fósseis e ao descarte inadequado de resíduos são os principais responsáveis pelo aquecimento global.
O desafio estrutural
O principal obstáculo para alcançar o lixo zero não é a falta de vontade, mas a estrutura da própria sociedade de consumo. Produtos são embalados em muitas camadas de materiais não recicláveis. Eletrônicos são fabricados sem opção de conserto. Alimentos percorrem milhares de quilômetros em embalagens excessivas. Tudo isso cria um sistema onde o resíduo é inevitável.
A lógica econômica atual prioriza volume, velocidade e lucro, não durabilidade, reparabilidade ou circularidade. Enquanto isso não mudar, falar em “lixo zero” será mais uma atitude simbólica do que uma meta concreta.
E se aceitássemos nossas limitações?
Admitir que “lixo zero” é uma ilusão não significa abandonar a luta por uma sociedade mais limpa e sustentável. Pelo contrário. Significa ser honesto sobre os desafios e evitar soluções simplistas para problemas complexos.
Em vez de buscar a perfeição inalcançável, podemos mirar em metas realistas e mensuráveis: redução de 50% da geração de resíduos em 10 anos, universalização da coleta seletiva, investimento em compostagem comunitária, proibição de plásticos de uso único, desenvolvimento de embalagens reutilizáveis e incentivo à economia circular.
Além disso, o Brasil precisa fazer o básico: universalizar a coleta e tratamento de esgotos e instalar aterros sanitários adequados em todos os municípios. Antes, algo ainda mais essencial: garantir que todo o lixo, seja orgânico ou seco, seja coletado e transportado com perdas mínimas para os aterros sanitários ou estações de reciclagem. Lixo jogado nas ruas ou terrenos urbanos e rurais vai acabar poluindo o meio ambiente. Esse ainda é um grande problema. Basta olharmos em volta para ver que há muito lixo que não é devidamente coletado.
A mudança sistêmica exigirá políticas públicas firmes, inovação tecnológica, engajamento das empresas e envolvimento direto da população. Mas, acima de tudo, exigirá uma mudança cultural: repensar o consumo não como um direito absoluto, mas como algo a ser praticado com responsabilidade.
Conclusão: menos lixo, mais consciência
O ideal do lixo zero cumpre um papel importante ao nos alertar para a urgência da crise dos resíduos. Mas, como todo ideal, ele deve ser compreendido como horizonte, não como ponto de chegada imediato. Somos, sim, uma civilização produtora de dejetos. Mas podemos ser também uma civilização capaz de se responsabilizar por eles.
Há um caminho: reconhecer nossos limites sem nos acomodarmos a eles. Buscar menos desperdício, mais eficiência, mais consciência. Porque lixo zero pode ser uma ilusão — mas um mundo sufocado por lixo é uma realidade que precisamos evitar.
Notas
*Este é o oitavo artigo da série dedicada a discutir soluções e estratégias para enfrentar a crise ambiental global. Tanto o livro "Planeta Hostil" quanto uma série de colunas publicadas na revista Sler abordam em profundidade os impactos da poluição do ar, das águas e dos solos.
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Foto da Capa: Reprodução do Jornal Nacional