A fantasia grassa solta por Porto Alegre. Não falo das fake news, que a Internet popularizou e passaram a infernizar nossas vidas. Falo de lendas urbanas, que prefiro chamar de lorotas, já que muitas delas têm viés interesseiro, maldoso, pois nasceram para atender interesses particulares.
Outro dia lembrei de uma das tantas revisões do plano diretor de Porto Alegre, quando espalharam “a verdade” de que o subsolo de Porto Alegre não era bom para se fazer garagens. Os jornais locais reproduziam a opinião dos construtores sem se preocuparem em aprofundar a questão. Cidades do mundo todo fazem garagens no subsolo, só aqui não era apropriado…
Na verdade, o que os construtores queriam era que a prefeitura isentasse garagens acima do térreo, e que essas não fossem computadas como áreas construídas. Algo assim como “o que você está vendo não existe”, não se incomode com esses horrorosos dois ou três pavimentos de garagens porque eles estão grafados como áreas excluídas na planilha da prefeitura.
Esta parte do edifício ganhou o nome de “base” e o edifício propriamente dito, acima, de “torre”. Uma solução urbanisticamente horrorosa para a cidade, mas econômica para os bolsos dos incorporadores… na época escrevi que era como se estivéssemos elevando o térreo para o terceiro pavimento, transformando as calçadas em subsolos. Você vai ver muitos edifícios construídos assim por aí. A lei ainda está em vigor.
Para que a cidade parasse de falar em metrô — e por quê? —, inventaram que vivemos sob uma rocha impossível de ser perfurada. Qualquer cidade mundo afora, menor que Porto Alegre, tem linhas de metrô funcionando. A movimentação de pessoas sobre trilhos faz parte do mundo contemporâneo. Manhattan foi construída sobre uma rocha e tem metrô subterrâneo. Furar montanhas rochosas é a coisa mais comum do mundo. Aqui não. Ao que parece, uma rocha rara, mais perigosa que kriptonita, não permite perfuração. Também corria a versão de que o metrô no centro da cidade ficaria abaixo do Guaíba, logo tinha o perigo de ser invadido pelas águas… Esqueceram de consultar a engenharia de túneis subaquáticos ou de prestar atenção nas centenas de linhas de metrô em situação semelhante mundo afora.
Um grupo de políticos, que não merecem ser nomeados, queria fazer um aeroporto na região de Portão e passou a divulgar que seria impossível ampliar a pista do aeroporto Salgado Filho porque o terreno não se prestava para isso. Conseguiram declarações de especialistas até do exército. Sei disso porque li atônito nos jornais. Não preciso lembrar aqui que a pista foi ampliada e o aeroporto passa bem…
Também teve aquele caso do viaduto da Anita Garibaldi que tinha uma pedra no meio do caminho. Até parecia poema de Carlos Drummond de Andrade. Mas não. Era uma daquelas obras da Copa de 2014 licitadas sem projeto executivo. Não ficava pronta nunca e teve o orçamento multiplicado porque havia uma pedra no subsolo, em Porto Alegre. Paradoxal, não? Não era aqui que se dizia que nosso subsolo era rochoso? Parece que os interesses agora eram outros…
A lorota de que é preciso adensar a cidade para aproveitar a infraestrutura é a mais antiga e persistente. Se de fato nossos administradores acreditassem nisso, Porto Alegre não se expandiria do jeito que se expandiu e se expande ainda hoje para as periferias, mesmo com população estável e declinante. Com a mesma liberalidade com que aprovam loteamentos que desmatam grandes porções de terra e obrigam a levar infraestrutura até eles, aprovam edifícios cada vez maiores em bairros tradicionais. Áreas onde os moradores, pela concentração desses edifícios, passaram a sofrer com a ausência de transporte coletivo e conviver com engarrafamentos. Com qualquer chuva um pouco mais forte, falta luz e internet e as ruas alagam rapidamente. A falta d’água é comum e persistente. Quer dizer, a propalada infraestrutura não existe.
Na mesma linha, segue a lenda de que adensar significa verticalizar, o que não é verdade. É possível alcançar altas densidades com prédios baixos. Paris é um bom exemplo. Outra lorota é a alegação de que em países que nos servem de referência, como os Estados Unidos, as pessoas vivem em arranha-céus. Não é bem assim. Pelo contrário, esses edifícios, na sua maioria, são destinados ao uso comercial. Manhattan é exceção, porém lá os moradores e visitantes usam preferencialmente transporte público. Garagens e estacionamentos são raros. Miami, que é uma espécie de capital latino-americana, é outra exceção.
Cidades como Baltimore, Filadélfia, Boston e outras, além das europeias Amsterdã, Londres e mais algumas, nos dão aulas de como se pode fazer grandes cidades com casas geminadas de baixa altura. Essa outra maneira de fazer cidades foi muito bem apontada no excelente livro The North Atlantic Cities, de Charles Duff.
Lorota trágica, parando por aqui, foi a de que o muro da Mauá não servia para nada. Por anos e anos, um investimento bilionário de proteção contra as cheias do Lago Guaíba — que levou décadas para ficar pronto — foi menosprezado, chegando a ser comparado ao Muro de Berlim. Se caiu lá, deveria cair aqui. O atual prefeito embarcou nessa conversa e simplesmente deixou de manter o sistema funcionando. O resultado, como vimos, não teve nenhuma graça.
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Foto da Capa: Ederson Nunes / CMPA