Pra onde você se virar hoje, no mundo acadêmico, tem alguém reivindicando um tal de “lugar de fala”. A expressão parece sugerir que “quem fala” (a autoridade do falante) ou “o quê fala” (a força do argumento) perderam seu valor em detrimento do “de onde se fala” (o lugar social que ocupa o falante). E é isso mesmo! Mas para entender esse tipo de novidade intelectual, típica de certa intelectualidade parisiense pós-68, é preciso entender o que houve antes.
É verdade que os gregos da antiguidade já achavam que assim como ninguém pode pensar ou sentir no lugar de outra pessoa, também não pode falar por ela: daí, para os gregos, a indignidade de uma democracia representativa. Mas, modernamente, a história é outra. Quando a noção weberiana de poder (uma vontade que age sobre a vontade do outro, reprimindo-a) começou a perder terreno e passamos a entendê-la como algo irrruptivo, capilar, disperso e presente em todas as relações, sobretudo aquelas que envolvem as “práticas discursivas” (Foucault), as coisas começaram a mudar.
Barthes não hesitou em afirmar que a “linguagem era fascista” e decidiu matar o “Autor” (não resisto à ironia: Barthes deveria se calar e, sem Autor, não receber mais nenhum direito… autoral!). Ou seja, a voz do Autor não era mais a (autor)idade impondo ou revelando uma verdade: era o seu fim como objeto de citação, como referência de pensamento, como mestre-escola. A partir daqui, os intelectuais começaram a ser criticados, seja por seu desejo de parecerem embaixadores do universal (produtores de transcendência), seja por se acharem a “voz dos que não tem voz” (defensores dos oprimidos). Surgem os intelectuais específicos, ligados a causas ditas “regionais” (feminismo, ecologia, presidiários, gênero, etc.) e saídos diretamente destes extratos sociais e culturais. Era o fim dos atravessadores do espírito.
A ideia de “lugar de fala” é muito característica de uma época em que não apenas os intelectuais, mas também a verdade que eles pretendiam anunciar, não faz mais sentido: com a perda do poder normativo da verdade, cada uma correspondendo a culturas singulares, tende a desaparecer o próprio princípio de autoridade (com sérias consequências pedagógicas, aliás!), assim como a validade daquilo que Habermas chamou de “o melhor argumento”. O “lugar de fala” é, no fundo, o recurso linguístico contemporâneo de recomposição das identidades culturais, dominadas, dispersas e fragmentadas.
Durante o Nazismo, Goebbels dizia que “quando ouço a palavra Cultura, tenho vontade de sacar meu revolver!”. Hoje, quando se ouve a palavra CULTURA, diz Alain Finkielkrault, “cada um saca a SUA cultura”, expressa em seu… lugar de fala!
PS: Caro leitor, peço que desconsidere tudo que disse acima. Afinal, meu “lugar de fala” é o da autoritária e normativa… Universidade!
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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