O Brasil reencontrou a esperança. E o Rio Grande do Sul quebrou um tabu. A eleição, por margem apertada, de Luiz Inácio Lula da Silva garante a condição de único presidente brasileiro a chegar, democraticamente, três vezes a presidência da República. E Eduardo Leite volta ao Palácio Piratini, seis meses depois de ter renunciado para tentar um voo ao Palácio do Planalto, quebrando o tabu de o Estado que nunca reelege o seu principal mandatário.
O Brasil sai dividido ao meio após o resultado eleitoral. Foi a menor diferença desde a instauração da Nova República, em 1985. Num universo de 153 milhões de eleitores, Lula ganhou com diferença de cerca de 2,3 milhões de votos (1,8%). “Não é uma vitória minha, do PT ou dos partidos que me apoiaram. É a vitória de um imenso movimento democrático”. Dos 60.345.999 votos de Lula para os 58.206.354 de Bolsonaro.
Com um discurso em tom conciliador, Luiz Inácio Lula da Silva chega aos 77 anos a terceira vitória (governou o País antes entre 2003 e 2010). O petista obteve 51% dos votos válidos na eleição mais apertada da História. “Não existem mais dois Brasis”, disse em quatro discursos que fez de ângulos diferentes para a multidão que ocupou a Avenida Paulista em São Paulo. Mas o resultado mostra um País rachado exatamente ao meio.
O ex-metalúrgico, que despontou para a política após as grandes greves do ABC durante a ditadura militar, volta a comandar o país em 2023 exatamente 12 anos após deixar o cargo e quase sete anos após o PT ser tirado do Palácio do Planalto em meio ao processo de impeachment da sucessora, Dilma Rousseff. “Não é uma vitória minha, do PT ou dos partidos que me apoiaram. É a vitória de um imenso movimento democrático”.
Em meio aos inúmeros discursos que fez na noite da vitória, Lula revelou que o presidente Jair Bolsonaro não lhe telefonou em cumprimento a uma tradição democrática. Não congratulou e nem fez discurso de derrota. Pelo menos, não negou o resultado das urnas ou convocou pancadaria. Os apoios que Bolsonaro dava como certo, não surgiram.
O pronunciamento na comemoração de Lula foi interpretado como um discurso de posse. Antes que qualquer aventureiro pensasse em questionar os resultados, as instituições o homologaram. A começar por um bolsonarista de primeira hora, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP). Depois, seguiu o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD). A presidente do STF, Rosa Weber, e o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, sacramentaram os resultados imediatamente e promulgaram os resultados, por volta de 19h30min. Alexandre de Moraes foi alvo predileto dos ataques do presidente.
O isolamento de Bolsonaro foi crescente nos últimos dias da campanha. No início da semana, um movimento quis pedir adiamento do pleito, mas os comandantes militares se calaram, recusando apoio ou ação. No domingo, a Polícia Rodoviária Federal, cujo diretor pediu voto a Bolsonaro nas redes sociais, tenta dificultar o acesso dos eleitores nordestinos às urnas, organizando quase 500 barreiras para checar documentos e condições dos veículos. No Nordeste, Lula ganhou e no Sudeste Bolsonaro mais perdeu votos.
Os cuidados de Janja
Conhecida como Janja, o Brasil assistiu ontem Rosângela Lula da Silva dar atenção e carinho ao marido recém-eleito. É uma mulher diferenciada. Quem assistiu pela televisão a pós-apuração, a vê pulando no palanque, acenando ao povo, alegre, sorridente e saltitante. Esteve sempre ao lado do marido.
No discurso, ainda no conforto do salão de um hotel, ela retira as folhas do discurso enquanto marido as lê sobre um púlpito. Abastece-o com água e seca seu suor. Chega a expressar no rosto a emoção que sente em trechos especiais do discurso. Faz cara de choro, mas não deixa correr lágrimas.
Janja é uma militante histórica do PT, ao qual se filiou em 1983, com dezessete anos. Lula encontrou Janja pela primeira vez em meados dos anos 1990, quando ela, recém-formada em ciências sociais da Universidade Federal do Paraná e ele saindo de uma corrida presidencial. O namoro, no entanto, só começou décadas depois, quando Lula já era viúvo de sua segunda esposa, a ex-primeira dama Marisa Letícia, que morreu em 2017.
Na noite de domingo, do alto de um palanque e perante uma multidão, Lula agarra a mão da mulher e diz:
“Deus me permitiu encontrar de novo o amor. Janja”, diz agarrando sua mão, “eu te amo”. Dá-lhe um beijo na boca e diz que não é “um beijo de novela”. O povo ri e aplaude. O casal presidencial irradia felicidade.
Há um movimento pendular à esquerda?
Se é fato que a volta de Lula confirma um movimento pendular na América Latina, de ciclos periódicos entre esquerda e direita, indica, por outro lado, a solidificação de “um bolsonarismo sem Bolsonaro”. Ou seja, a direita como força política que avança no Congresso Nacional e nos Governos de Estado, mas perde o líder. A direita de Bolsonaro não é a democrática, mas radical. Clama por Deus, Pátria e Liberdade, que faziam os neofascistas brasileiros na década de 1940 e 1950, é conservadora nos costumes e nos conceitos racistas e misóginos.
Lula, de seu lado, vai ter que encontrar uma forma de conviver com esse oposto, enquanto reforça alianças não apenas em seu campo ideológicos, mas outros próximos. Não à toa citou a senadora Simone Tebet, que subiu ao palanque no segundo turno, e a deputada Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente de Lula e que se afastou por divergências.
No continente, a esquerda está na Colômbia, com Gustavo Petro; no Chile, com Gabriel Boric; no Peru, com Pedro Castilho; na Argentina, Alberto Fernández; no México com Andrés Manuel López; Venezuela, Nicolás Maduro; Bolívia, Luiz Arce; Nicarágua, com Daniel Ortega; Cuba, com Miguel Días-Canel. Apenas três entre os principais países mantêm governos de direita: Uruguai (Luis Lacalle Pou), Paraguai (Mario Abdo Benítez) e Equador (Guillerme Lasso).
No RS, Leite ainda é o “Mistério da Esfínge”
O governador reeleito Eduardo Leite quebrou dois tabus ao mesmo tempo: conquistou uma inédita reeleição com apoio decisivo da esquerda e não revelou seu voto para presidente da República. Além disso, revelou publicamente ser homossexual. Leite bateu Onyx Lorenzoni (PL) no segundo turno das eleições neste domingo por 57,12% a 42,88%. Ao longo deste mês, o tucano recebeu apoios importantes da esquerda, como o PT e o PDT.
O futuro governador agradeceu nominalmente o PT em seu pronunciamento:
– Este voto vem se não com convergência dentro do programa, na convergência em torno da democracia, do respeito e do diálogo.
Ele refere-se ao petista Edegar Pretto (PT), que por menos de três mil votos, não lhe tira a vaga no segundo turno. Mas o PT decidiu um apoio crítico a Leite, capitaneado pelas principais lideranças. Também acenou ao PDT, igualmente apoiador, e prometeu implantar escolas de turno integral, bandeira histórica do trabalho de Leonel Brizola. Leite não revelou seu voto para a presidência. No entanto, disse que “votou pela democracia e pelo respeito às instituições”, sugerindo um voto em Lula.