Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden se encontraram na quarta-feira e lançaram uma iniciativa conjunta de defesa dos direitos dos trabalhadores frente aos desafios tecnológicos, climáticos e econômicos. Antes do evento, eles tiveram uma reunião bilateral. Anfitrião do encontro, o presidente americano foi o primeiro a falar. Ele afirmou que Brasil e Estados Unidos, sendo as maiores democracias do Ocidente, estão “se erguendo para defender os direitos humanos ao redor do mundo”, o que inclui os direitos trabalhistas. Afinaram convergências como o passado comum com a democracia e a origens.
Um dia depois, Lula encontrou-se para zerar divergências até então mal aparadas com seu colega da Ucrânia. Após uma série de desencontros, o presidente Lula se reuniu com seu homólogo ucraniano, Volodimir Zelenski, às margens da Assembleia-Geral das Nações Unidas. O brasileiro reforçou sua posição de que o país estará presente em todos os esforços que levem à paz na Guerra.
“Foi a reunião que devia acontecer e precisava acontecer. Ouvi a história do Zelenski e disse da necessidade de a gente trabalhar para construir a paz”, afirmou o petista a jornalistas logo depois à noite. O presidente voltou a falar sobre a ideia de uma proposta de consenso ser construída por um grupo de países amigos. “Eu disse ao Zelenski que é importante construir uma mesa de negociação para parar com a guerra e ver se a gente consegue encontrar uma solução. Eu sei que é difícil tanto para ele quanto para o Putin (Vladimir Putin, presidente russo).
Será que, com a segunda conversa, Lula atingiu a expectativa de um mediador global de um novo futuro para o mundo? Ele é visto sem reserva pelo norte-americano, mas será que se um republicano vencer a próxima eleição o mesmo acontecerá? E, se um republicano vencer, o mesmo apoio que o Estados Unidos oferece a Ucrânia permanecerá? O xadrez mundial é jogado sempre com delicadeza, basta ver que a precipitação de Lula em seus primeiros movimentos gerou uma reação brusca e arisca de Zelensky, que levou todos esses meses para recompor.
Com os Estados Unidos
O petista ponderou que se vive um momento histórico em termos geopolíticos, diante das ameaças à democracia por setores extremistas. Segundo Lula, o objetivo da proposta é oferecer uma perspectiva de trabalho decente, especialmente para a juventude, em um momento em que o mercado de trabalho passa por transformações como a crise climática e a inteligência artificial.
“É mais que bilateral, é o renascer de um novo tempo da relação entre Brasil e Estados Unidos, relação entre iguais, soberanos, de interesse comum”, completou. Biden, por sua vez, disse que EUA e Brasil têm a obrigação de liderar a próxima geração para um mundo melhor. Quebrando protocolo, ele voltou a responder Lula no período aberto da reunião, contando que ouvia de seu pai que trabalho é muito mais que salário, é também dignidade e respeito, uma frase que o americano repete com frequência em seus discursos.
O petista não deixou passar batido a greve histórica de trabalhadores de montadoras nos EUA, que começou na última sexta. Lula afirmou que o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, se reuniu com a UAW, o sindicato que comanda a paralisação. Na semana passada, o presidente americano apoiou os trabalhadores em greve e disse que eles merecem ter sua parte nos lucros recordes das montadoras. Apesar do tema ser centrado em trabalho, Lula aproveitou para falar das oportunidades de investimento no Brasil em energia limpa, como biocombustíveis e hidrogênio verde. Depois, a imprensa foi retirada da sala, e o resto da reunião transcorreu a portas fechadas.
A declaração conjunta assinada pelos países tem uma linguagem genérica. Ela elenca cinco prioridades, como o combate à exploração, como trabalho forçado e infantil, o impacto da transição energética, da tecnologia e da inteligência artificial sobre a mão de obra, e o combate à discriminação, como racismo, machismo e homofobia. Não se trata de uma proposta de legislação ou algo mais concreto em termos legais.
“Face aos complexos desafios globais, desde as alterações climáticas ao aumento dos níveis de pobreza e à desigualdade econômica, devemos colocar os trabalhadores e as trabalhadoras no centro das nossas soluções políticas”, afirmam os países. “Pretendemos trabalhar em colaboração entre os nossos governos e com os nossos parceiros sindicais para fazer avançar estas questões urgentes durante o próximo ano, vislumbrando uma agenda comum para discutir com outros países no G20 e na COP 28, COP 30 e além”, completam.
Depois da reunião, os dois presidentes participaram de um evento para lançar um documento. O diretor-geral da OIT (Organização Mundial do Trabalho), Gilbert Houngbo, também estava presente. Os três falaram diante de uma plateia de sindicalistas brasileiros e americanos, além de ministros.
Depois do evento, Lula falou rapidamente com jornalistas. “Nós não estamos preocupados em recuperar coisas do passado. Nós estamos muito mais preocupados em criar coisas novas. Como vai ser a relação capital e trabalho daqui para frente, no século 21”, disse. O petista em seguida criticou o tratamento dado por plataformas digitais aos trabalhadores, que, segundo ele, “tratam as pessoas quase como trabalho escravo”.
“É inimaginável que no mundo digitalizado todo moderno o ser humano seja tratado ainda como se fosse escória.”
A cooperação vem sendo costurada desde o início do ano, quando Biden propôs a Lula uma parceria na área durante encontro entre os dois no G7. Para membros do governo americano, a parceria vai além de uma cooperação bilateral. Para os EUA, a iniciativa tem uma “natureza global”. Diante do acirramento da disputa geopolítica com a China, o país tem se esforçado para criar laços mais fortes com aliados.
Do ponto de vista brasileiro, o objetivo é aproveitar o interesse americano para explorar vantagens na relação com a potência, mas mantendo uma posição autônoma. A temática trabalhista é uma convergência entre Lula e Biden. Ambos os presidentes têm relações muito próximas com o movimento sindical e o petista ganhou projeção como líder metalúrgico, enquanto o americano se autoproclama o presidente mais pró-trabalhador da história dos EUA.
De acordo com membros do governo americano, esse alinhamento entre os dois presidentes no tema foi uma das razões pelas quais o Brasil foi escolhido como parceiro. A Casa Branca também destaca que há uma colaboração de anos entre os dois países. A ideia é que outros países se juntem à iniciativa, a partir do lançamento entre Brasil e EUA. Os países devem levar a proposta a outros fóruns multilaterais, como o G20.
Aproximação quebra gelo entre Lula e Zelensky
A reunião entre Lula e Zelensky, realizada no hotel em que Lula está hospedado, começou por volta das 17h (horário de Brasília) e terminou pouco depois das 18h. Diferentemente de todos os outros líderes com quem o petista se encontrou, que tinham que passar pelo saguão do hotel, o ucraniano subiu diretamente.
O assessor especial da Presidência, Celso Amorim, disse que a ideia de um grupo de países amigos, que vem sendo chamada de “clube da paz“, envolve países interessados em uma solução para o conflito, como o Brasil e os africanos. Além do conflito, os dois líderes também conversaram sobre outros interesses comuns, como a reforma do sistema de governança global, especialmente do Conselho de Segurança da ONU, demanda histórica da diplomacia brasileira que, nesta edição da Assembleia, encontrou eco em discursos como o do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o do secretário-geral da ONU, António Gutierres.
O ministro das Relações Exteriores ucraniano, Dmitro Kuleba, afirmou que o encontro entre os presidentes foi uma “quebra de gelo”. “Não que existisse gelo entre nossos países, mas a conversa foi muito calorosa, e eu acho que os dois presidentes entendem muito melhor as posições um do outro do que entendiam antes”, disse.
Já o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, afirmou que Lula e Zelenski tiveram uma “longa discussão em um ambiente tranquilo e amigável”. O titular do Itamaraty também procurou aparar as arestas em relação ao histórico turbulento entre os dois chefes de governo. “Não acho que houvesse declarações desencontradas”, disse o ministro.
Foto da Capa: Ricardo Stucker/ PR