A grande polêmica brasileira nas últimas semanas se deu na área da biologia. Mesmo datá-la “das últimas semanas” talvez seja incorreto, uma vez que suas principais discussões e discordâncias se referem a dissensos que, a bem da verdade, não foram resolvidos de modo satisfatório nas últimas duas ou três décadas, então o mais acurado talvez fosse comentar a polêmica como o episódio mais recente de uma longa e aparentemente interminável treta.
A questão é que uma organização que já contou com bastante prestígio no fim do século XX e início do século XXI, o Instituto de Precisão Taxonômica, ou Instituto PT, como é mais conhecido, vem apresentando desde o início do ano o que eles próprios identificam como um novo e revolucionário exemplar de vida vegetal, a chamada Lulorquídea delicada (nome científico: Oncidium loligo presidentis delicatea), um tipo raro e muito delicado de orquídea, sensível como nenhuma outra às variações de temperatura, ambiente e até mesmo de humor e direção geográfica das populações circunstantes.
A L. presidentis, da forma como vem sendo apresentada pelos pesquisadores do Instituto PT, deriva seu nome do fato de seus cálice, sépalas, pétalas e labelo extremamente complexo combinarem-se para formar um arranjo que lembra uma lula estilizada de cor vermelha intensa nas camadas mais externas, esmaecendo drasticamente à medida que se analisa com mais atenção suas três pétalas interiores. Cruzam o centro do labelo duas manchas rajadas diagonais em verde e amarelo. Ao contrário de espécies que crescem de acordo com a direção do sol, a L. presidentis desenvolve-se inclinada para a esquerda.
Estariam no lado esquerdo da planta também os receptores mais sensíveis às condições atmosféricas. Os artigos de descrição da L.presidentis afirmam também que a planta parece concentrar recursos defensivos do mesmo lado, tornando-se extremamente vulnerável se, por alguma anomalia de crescimento, o caule se inclinar mesmo que levemente à direita. É por esse lado que, supostamente, infestam a planta parasitas de alto poder daninho como o fungo conhecido como chupim centrão,
Curiosamente, dizem os taxonomistas do Instituto PT, depois de contaminada pelo parasita agressivo que teve acesso a sua estrutura pelo lado direito, aparentemente os mecanismos internos da Lulorquídea delicada confunde, inesperadamente a relação predatória com o parasita com uma relação de simbiose, apressando assim a destruição da planta porque, além de ser vorazmente consumida pelo predador, a L.presidentis parece fazer questão de abrir ainda mais suas defesas depois de contaminada e abrir acesso ao invasor até os recessos mais profundos de seu organismo.
Assim, advertem os botânicos do Instituto PT, quaisquer pessoas interessadas em plantar a Lulorquídea delicada deve fazer todos os esforços possíveis para garantir seu desenvolvimento sem obstáculos ou resistências à sua inclinação à esquerda. Ventos sinistros, paredes, até mesmo a vizinhança de outras plantas com a mesma orientação de crescimento podem levar a L. presidentis a se tornar vulnerável aos parasitas que a infectam pelo lado direito, levando à perda completa da orquídea rara e valiosa, sobre a qual, acreditam os biólogos do Instituto PT, depositam-se as maiores esperanças de tornar o Brasil um país-referência no cultivo (algo que seria de se esperar considerando a exuberância da natureza nacional, mas aparentemente ainda não aconteceu)
Até aí, vocês, meus considerados oito ou nove leitores (fui informado de que o número de vocês pode ter aumentado nas últimas colunas, circunstância que me deixa muito alegre), devem estar pensando como a descoberta de uma nova forma de vida vegetal sofisticada poderia gerar confusão, como eu disse na abertura do texto. Mas a questão é que no mundo da taxonomia científica é nos detalhes que moram deus, o diabo e umas 20 outras entidades encrenqueiras.
Um dos pontos em que insistem várias vertentes da biologia acadêmica brasileira, especialmente filiadas ao “grupo de nomenclatura radical” (que começou como um seminário de estudo de raízes e depois espraiou seus interesses por outros campos da botânica), é o fato de, apesar da descrição minuciosa dos aspectos peculiares da L. presidentis, há evidências bastante fortes para sustentar a ideia de que essa não é uma variedade nova de orquídea super rara, é sim uma subespécie com poucos elementos específicos de outra planta já bastante descrita em trabalhos acadêmicos e de divulgação científica, a Lulorquídea de Garanhuns (nome científico: Oncidium loligo garanhunensis). O efeito principal dessa caracterização para muitos feita equivocadamente pelo Instituto PT vai além de uma simples confusão entre nomes. A questão é que, sabe-se há muitos anos, a Lulorquídea de Garanhuns não é, de modo algum, uma orquídea frágil e que inspire o tanto de cuidados recomendados na apresentação da suposta nova espécie. Embora ela de fato tenha um ciclo de crescimento em que seu caule e demais estruturas se desenvolve para a esquerda não importa a posição do sol, ela não é assim tão vulnerável se encontrar obstáculos pelo caminho, pelo contrário, demonstra uma adaptabilidade admirável mesmo em comparações com outros exemplares de Orchidaceae..
Outros lembram ainda que a própria Lulorquídea de Garanhuns já teve outra subespécie descrita com comportamento semelhante, a Lulorquídea Pacificada, (Oncidium loligo pacemore), com o vermelho de suas pétalas interiores bastante esmaecido em comparação com Lulorquídea de Garanhus original. Vários trabalhos acadêmicos do início do século XXI, quando esta subespécie particular começou a ser catalogada, também apontam seu crescimento à esquerda, mas, ao contrário da extrema vulnerabilidade demonstrada ao encontrar alguma resistência, parece não ter problema nenhum em contornar os obstáculos e seguir a direção do vento.
Algumas críticas apontadas foram o bastante para que o Instituto PT rechaçasse as críticas com veemência e apontasse uma conspiração dos taxonomistas radicais, movida por interesses estrangeiros, para sabotar a promissora ciência biológica nacional. Ou que havia interesse em dizimar a planta recém-descoberta estimulando a sua contaminação por parasitas com falsas recomendações de cuidado e plantio – tendo como resultado final a desvalorização internacional da ciência brasileira e do valor da própria espécie recém catalogada. Os críticos têm repetido que não entendem por que os especialistas do Instituto PT tentam vender como orquídea rara e delicadíssima uma variedade comprovadamente resistente.
O debate segue longe de terminar.
PS: Claro, há ainda um grupo minoritário, o vinculado ao instituto Modelos de Biologia Lunática (MBL), que defende que a descrição da Lulorquídea delicada é fraudulenta e que, na verdade, o que está apresentado ali não é nem mesmo uma orquídea, mas um exemplar do reino animal já bastante conhecido desde meados dos anos 1970, o Sapolítico barbudo (nome científico: Publica rana barbata). Como convém ao grupo MBL, que leva o “lunático” do nome a extremos na apresentação de seus controversos trabalhos, essa é uma afirmação que, embora seja muito popular nos grupos de WhatsApp, ainda não foi dignificada por nenhum paper vinculado a uma instituição de pesquisa séria. Mas com a atual situação do debate científico, sabe-se lá até quando isso vai continuar assim.