Recorro a algumas publicações da própria entidade e à memória pessoal para falar da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a Agapan. Suas causas iniciais foram a luta contra os agrotóxicos, a destruição provocada pelas mineradoras, a poluição industrial da celulose e a poda indiscriminada de árvores.
Criada em 27 de abril de 1971, em pleno governo Médici. Teve como sócios-fundadores Augusto Carneiro, Hilda Zimmermann, Alfredo Gui Ferreira e José Lutzenberger – o Lutz, que recém deixara o emprego numa multinacional europeia para voltar à Porto Alegre, entre outros idealistas visionários.
Quem, de mais idade, esqueceu a história malcheirosa da Borregaard? A indústria norueguesa fora estimulada pelos desenvolvimentistas do governo brasileiro. Aqui não teriam os entraves que estavam iniciando na Europa. “Poderiam poluir à vontade!” Vieram, sem qualquer preocupação em planos antipoluentes. Segundo o químico e geneticista Flávio Lewgoy, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, que se integrou ao agrônomo Lutzenberger e à luta quixotesca da Agapan: “Eles vieram para cá achando que estavam indo para o fim do mundo, e esse foi o seu grande erro”.
O odor era a evidência menos nociva daquela poluição. Mas o irônico dessa história é que o cheiro de repolho azedo e ovo podre que vinha da outra margem e que “perfumava” a capital acabou ajudando a fermentar uma, até então incipiente, consciência ambiental.
Na manhã de 25 de fevereiro de 1975, o estudante de engenharia e membro da Agapan, Carlos Dayrell, subiu em uma tipuana que seria cortada na Avenida João Pessoa para a construção de um viaduto. Naquela mesma tarde, outros dois universitários, Teresa Jardim, da biblioteconomia, e Marcos Saraçol, da matemática, juntaram-se a ele. Apoiados aos galhos da árvore condenada, a façanha movimentou a opinião pública e repercutiu mundialmente. Isso fez calar as motosserras, certamente demoveu algumas armas engatilhadas e tornou-se um marco do movimento ambientalista. A árvore permanece lá, em frente à faculdade de direito e foi o viaduto que teve que se desviar. Que boa sensação acompanhar aquele misto de inconformidade e bravura. Porto Alegre era notada pelo mundo por sua vanguarda ecológica.
Parafraseando Erico Verissimo, que dizia-se privilegiado porque era de uma cidade que tinha uma orquestra sinfônica, eu, naqueles meus – nossos – verdes anos, começava a achar-me também um afortunado. Era de um lugar onde também tínhamos uma entidade com os nobres, ousados, inovadores e, sobretudo, corajosos propósitos da Agapan.
Foi por essa época, estudante do segundo grau em Taquara, que me associei à entidade. Lembro do “Seu” Augusto Carneiro chegando no Armarinho de Miudezas dos meus pais, ao lado da antiga Estação Ferroviária. Ele e a esposa, Rosalina, estavam indo para a serra e aproveitaram para conhecer o novo sócio – Mas é um guri! -, entregar a carteirinha de associado e cobrar a anuidade. Senti o orgulho do meu pai ao receber a visita inusitada e pagar aquela taxa.
Em 1978, já morando em Porto Alegre e tendo iniciado o curso de medicina na UFRGS, passei a frequentar as reuniões da Agapan. Eram realizadas num salão no fundo de um prédio da Rua da Praia, perto do Correio do Povo. Parecia algo subversivo – e era -, certamente bem vigiado por alguns olheiros. Lembravam furtivos encontros do princípio da cristandade, nas catacumbas de Roma.
Noitadas de discussões e palestras, para alguns apocalípticas, com a verve e a entonação profética do Lutzenberger e a participação de conferencistas convidados. A tudo eu acompanhava com tímida empolgação. Lá conheci e passei a admirar também, além das figuras já citadas, Magda Renner e Giselda Castro, e Caio Lustosa, outros notáveis ambientalistas.
Época de temas como a polêmica maré vermelha que atingiu o litoral do Estado, protestos contra os aterros de resíduos na ilhas do rio Guaíba, acirradas discussões sobre a instalação do Polo Petroquímico de Triunfo e que acabaram contribuindo para que o grupo de empresas pudesse buscar um modelo de responsabilidade ambiental
Em 17 de agosto de 1988, dá-se outro ato emblemático. Na Usina do Gasômetro, uma manifestação com o objetivo de chamar a atenção para a votação do Projeto Praia do Guaíba, marcada para aquele dia na Câmara de Vereadores. Os integrantes da Agapan à época, Gert Schinke, Guilherme Dorneles, Gerson Buss e Sidnei Sommer, escalaram a gigantesca chaminé e desfraldaram uma faixa de protesto ao projeto. A ocupação da orla do Rio Guaíba passaria a integrar a agenda política, polêmica que se mantém desde então.
Nessa trajetória, outras realizações importantes contaram com a decisiva participação da Agapan. A criação da primeira Secretaria de Meio Ambiente do Brasil, em Porto Alegre, caminho aberto para outras secretarias ambientais do país e do próprio Ministério do Meio Ambiente. Também a Lei Estadual nº 7.747/1982, sobre o controle de agrotóxicos, anterior à legislação brasileira e exemplo para outros estados.
Pode-se agregar ainda a criação do Parque Nacional dos Aparados da Serra, do Delta do Jacuí, do Taim, do Turvo, de Itapuã, de Itapeva, do Espenilho, do Morro do Osso e da Reserva Ecológica Municipal José Lutzenberger, hoje Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger, bem como do Parque Nacional Fernando de Noronha, com a posterior elaboração do primeiro Plano de Manejo de parques do Brasil.
Não podemos esquecer, ainda, de nomes como Henrique Luís Roessler, que criou, antes disso e também em solo rio-grandense, a primeira ONG da causa verde no país: a União Protetora da Natureza, em 1955. E as pesquisas e lições de alerta do padre jesuíta Balduíno Rambo, que, com seus escritos, fizeram dele outro precursor da defesa da natureza.
Com essa história vibrante, uma verdadeira epopeia ambientalista, cabe pensar como se comportariam esses nossos bravos profetas, no momento em que vivemos o desastre de maio de 2024.
Não é hora de apontar culpas, dizem alguns. Agora devemos nos unir e, com razão, estamos unidos. Mas é preciso questionar como chegamos até aqui?
Fenômeno climático, sim, mas e nós? Quando passou a se desrespeitar, alterar, omitir leis tão arduamente conquistadas? Quando se descuidou de monitorar comportas, diques, matas ciliares, construções em áreas de risco? Há quem apregoe interesses em passar a denominar de lago o nosso estuário. Isso tem algum fundamento? Quem desdenhou alertas e não valorizou previsões? Quanto se contribuiu para esse fenômeno e se facilitou suas consequências?
Em 1976, José Lutzenberger escreveu o livro “Fim do Futuro? Manifesto Ecológico Brasileiro”, publicado pela editora Movimento por iniciativa da Agapan. Para entender que somos apenas parte de um sistema maior e de peculiar equilíbrio é preciso antes de tudo humildade e lucidez. Seres vivos num universo também vivo.
Não é momento para buscar falhas, repete-se. Em meio a colossal tristeza, o povo se ajuda, faz campanhas, acolhe os desabrigados, dá à mão a quem precisa, humano ou animal. Um oceano de solidariedade inunda corações e umedece o olhar e a alma.
Há também oportunismos, falsas notícias, vilanias. Em situações assim emerge e revela-se o melhor e o pior de todos nós. Serenidade, está certo, não há clima para imputar faltas, mas, se mais uma vez deixarmos que se escondam responsabilidades sob a lama, é muito provável que seja essa a nossa maior colaboração para o fim do futuro.
Foto da Capa: Secom | RS
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