Desde que Arquimedes disse que moveria o mundo se lhe dessem um ponto fixo e uma alavanca, não paramos mais de descobrir o quanto tudo nesse universo é movediço: o espaço, o tempo e até mesmo a memória. No filme Como se Fosse a Primeira Vez (2003) dirigido por Peter Segal, Lucy precisa ser conquistada pelo namorado a cada novo dia, pois já não se lembra dele. Nós, felizmente, recuperamos a nós mesmos automaticamente ao acordar: reinstalamos, para usar a linguagem dos computadores, a memória instantaneamente para continuar a ser o que éramos ontem. Também poderíamos optar por instalar um novo propósito, viver uma nova vida… A liberdade é tamanha que faz lotar templos e consultórios.
Essa fluidez que assusta, também encanta. Arte, filosofia, psicanálise e religião buscam conexões com um mundo interno inacessível por outros caminhos. O mergulho no universo insondável em busca do “quem somos nós em que mundo” não traz respostas, mas sugere percursos. E movimento é vida, nos basta.
Dentro desse mistério que é nosso cérebro, a pergunta que sempre me vem é por que guardamos determinadas vivências com tanta intensidade enquanto outras somem sem deixar rastros. Dessas nem de esquecimento podemos falar, elas simplesmente somem. Das que subsistem, e que sabemos que são constantemente reconstruídas, para que servem? Não falo de memórias úteis, que nos ligam à realidade, falo daquelas cenas que do nada reaparecem, sem pretexto ou contexto. Cenas nítidas como se fossem alguns metros de fotogramas de um filme perdido no espaço e no tempo.
Uma lembrança assim, que eu tenho, é a de sombras se movimentando no teto. Explico. Muito criança eventualmente dormíamos, eu e minha irmã, no apartamento da minha vó, no sétimo andar de um edifício em frente ao Pronto Socorro Municipal de Porto Alegre. Tenho muito nítido na cabeça o som que os bondes faziam, um “oooh” prolongado, e mais ainda a sombra que projetavam no teto do quarto onde nos botavam para dormir. Não sei se eram mais rigorosos que meus pais com o horário para ir para cama, ou algum outro motivo, mas lembro que eu demorava para dormir e me distraía muito com aquela movimentação no teto. Me intrigava especialmente o fato de o bonde ir numa direção e a sombra em outra. O sono, evidentemente, chegava antes que eu decifrasse o mistério e no outro dia nem lembrava mais do assunto. Não sei dizer quando essa vivência resolveu voltar e guardar um lugar junto a mim. Mas ela está aqui, traz boas sensações. Como me faz bem, deixo-a ocupar esse lugar com prazer.
Agora fico pensando, e foi o psicanalista e amigo Edson Souza que me trouxe o problema: que tipo de memória está criando uma criança que tem um luminoso de LED que pisca a noite inteira apontado para sua janela? No caso, a observação dele veio do que acontece na esquina da 24 de Outubro com a Florêncio Ygartua, mas o fato é suficientemente recorrente para ser lembrado nessa coluna. A quantidade de luminosos espalhados pela cidade não para de crescer. Parece que todo aquele esforço feito há alguns anos atrás para limpar a cidade da publicidade foi por água abaixo.
A luz noturna já não produz as mesmas sombras de ontem e nós, hipnotizados pela luz em movimento das telas piscantes, perdemos a chance de ter prazer com elas, de ter a alegria de fazê-las dançar como fez Win Wenders no final do filme Dias Perfeitos.
O medo do escuro está matando a noite e, com ela, vai-se embora a beleza do claro escuro. A vida sem sombras acontece sob um céu que já não instiga, um céu cada vez mais irremediavelmente opaco. O lindo nome da cor “azul noite” já não traz à memória a imensidão e profundidade do infinito. As estrelas perderam seu lar.
O céu que deu a Arquimedes elementos para formular um teorema e abriu caminho para que hoje chegássemos ao poder de destruir o mundo natural já não pode mais ser visto por nós comuns cidadãos. Sob o excesso de luzes que piscam, a cegueira é cada vez maior. Precisamos olhar para o escuro. Com urgência.
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Foto da Capa: Ilustração gerada por Pikaso