Uma já seria estatística. Duas, um absurdo. Mas 10! Uma dezena de assassinatos em quatro dias é um escândalo, uma epidemia! O Estado onde vivo está atravessando uma fase que precisa ser analisada, pesquisada e compreendida por todos aqueles que têm noção do significado desse fenômeno.
Para recapitular, entre a madrugada de sexta, 18 de abril, e a tarde de segunda, 22, dez mulheres foram assassinadas em circunstâncias parecidas: quase todas foram mortas por companheiros ou ex-companheiros em distintas regiões do Rio Grande do Sul. Os crimes aconteceram em micro, pequenas e cidades de porte médio: na segunda, em Pelotas; domingo, em Serafina Corrêa e Ronda Alta. Na sexta, que era para ser santa, foi sangrenta, os assassinatos foram em Feliz, Parobé (vítima estava grávida), São Gabriel, Bento Gonçalves, Viamão, Santa Cruz e, de novo, em Serafina Corrêa.
Esse assunto me toca demais porque não só já tive namorados bem machistas, como convivo com mulheres que têm maridos altamente possessivos e controladores. Pior: uma amiga querida foi assassinada pelo próprio marido, que jamais tinha apresentado comportamentos violentos. O sujeito, sempre educado e doce, matou não só ela, mas a sogra, o filho de 14 anos e depois tirou a própria vida. Isso deixou todos que conviviam com a família completamente estarrecidos. Foi o velório mais triste e marcante que já presenciei, com os caixões perfilados, fechados, com as fotos dos mortos nas tampas.
Desconfio que aqui no Rio Grande do Sul, onde tem gente que ainda se orgulha de suas façanhas, todo riograndense conhece alguma mulher que tenha sido agredida ou teve a vida ceifada pelo namorado ou marido. Eu comecei a pontuar todos os casos que me vinham à cabeça. Me apavorei! Uma colega de serviço do meu marido, outro: um médico, filho de um amigo querido, envenenou a própria mulher, que era enfermeira! Conversei várias vezes com uma pessoa que trabalhou comigo depois do marido fazer horrores com ela… Chegou num ponto que pedi que ela nem me falasse mais, já que ela continuava com ele.
Confesso que não acompanho de perto essa pauta de violência contra a mulher. As notícias sobre clima, do estado do ambiente local e do mundo, já me consomem demais. No entanto, essa sociedade doente é puro suco do desequilíbrio ecológico, mental, onde questões que precisavam já estar superadas vêm à tona feito esgoto que brota do ralo. Ou melhor, das bocas de lobo. São as mulheres também que mais sofrem as consequências das mudanças climáticas por vários fatores. Ou seja, nós, mulheres, precisamos estar cientes do nosso papel nesse momento da humanidade. E precisamos saber encarar essa dura realidade multifacetada.
Acredito que esse contexto é a pontinha de um iceberg que esconde muitas coisas que foram empurradas para debaixo do tapete da nossa história e que vêm sendo estimuladas por determinados grupos que deitam e rolam nas redes sociais (por que será que tantos congressistas não querem a regulamentação da internet?).
Aliás, saber lidar com tanta informação pesada é um mega desafio hoje. É um aprendizado contínuo saber das coisas, manter a lucidez e a serenidade para não se abalar.
O inacreditável universo da machosfera
Pedi ajuda para um universitário que já sabia o tanto de conteúdo que é jogado nas redes para proliferar visões onde a igualdade entre os sexos é combatida. O foco é principalmente em adolescentes e homens jovens que estão vivendo desilusões amorosas. Aqueles que levaram um fora e não estão sabendo lidar com a frustração, a dor de cotovelo. Para eles, mulher boa é a que faz comida e é comida. E o homem precisa ser o provedor, ter dinheiro, poder, acreditar no seu sucesso e manter o patriarcado mais vivo do que nunca. Conheço vários casos desse tipo.
No portal Catarinas há uma reportagem que explica o quanto estão crescendo iniciativas para formar homens machos machucados. Dá uma espiada ou leia a fundo o estudo “APRENDA A EVITAR ‘ESSE TIPO’ DE MULHER“: ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E MONETIZAÇÃO DA MISOGINIA NO YOUTUBE – RELATÓRIO DO OBSERVATÓRIO DA INDÚSTRIA DA DESINFORMAÇÃO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS. A pesquisa faz parte do Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, parceria do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Ministério das Mulheres.
Peço desculpas, queridas leitoras e estimados leitores, mas não vou dar os links para não estimular a visualização de vídeos, podcasts etc. do que tem sido espalhado sem qualquer forma de regulamentação. Além de ser muita desinformação, é de causar náusea, tontura, entre outros desconfortos, por provocar tantos absurdos.
Só para ter uma ideia, o trabalho revelou que, pelo menos, 137 canais brasileiros no YouTube contêm conteúdo misógino. E eles tinham, até então, juntos, 3,9 bilhões de visualizações. A maior parte deles, 80%, se vale de estratégias de monetização, como anúncios, Super Chat, doações e vendas de produtos.
E há nesse bioma de homens que não devem se tratar (leia-se fazer terapia, ir ao médico etc.), distintos ecossistemas de machismo. Confira alguns trazidos pela reportagem do portal Catarinas:
– Red Pill, um tipo de conteúdo que alardeia que os homens são vítimas principalmente de feministas. Por isso, as transformações que promovam igualdade de gênero precisam ser combatidas.
– Men Going Their Own Way (MGTOW) em Português: “Homens seguindo seu próprio caminho”. Eles acreditam que as mulheres atrapalham os homens, por isso devem focar mais no desenvolvimento pessoal, em especial nos aspectos financeiro, físico e intelectual do que em relacionamentos com elas.
A pesquisa identificou que o grupo MGTOW também demonstra um profundo ceticismo em relação às instituições, que, segundo eles, privilegiam as mulheres em detrimento dos homens. São comuns ataques às leis de proteção às mulheres ou a qualquer iniciativa em prol da igualdade de gênero. (Valenga, 2025)
– Sigma: acham-se homens fora de série, inteligentes, incompreendidos e o sucesso financeiro é objetivo de vida. Adoram ostentar luxo e conquistas pessoais.
– Pick Up Artists (PUAs): algo como “artistas da sedução”, acreditam que têm o poder da sedução e focam na sua performance sexual. Para eles, as mulheres não passam de objetos de prazer.
– Celibatário Involuntário (Incel): acreditam que são vítimas e condenados à solidão. Cercados por uma aura de frustração e pessimismo, é comum demonstrarem ressentimento por comportamentos de mulheres, exacerbando discursos misóginos.
Ah, vale lembrar que esses influencers entrevistam deputados, artistas etc., que dizem que regulamentar a internet é censura… Nem vou citar nomes porque, se você quiser, é só dar uma investigada e vai descobrir vários.
Legendários para quem?
Li esses dias uma reportagem no jornal O Globo, de 17 de março, sobre o movimento Legendários. A iniciativa que se autointitula cristã está se espalhando igual a rastilho de pólvora pelo Brasil. E os pilares do movimento são justamente “restaurar o potencial masculino”. Criado em 2015 na Guatemala, o movimento está atraindo famosos e políticos.
Eis um trecho da matéria:
No Brasil desde 2017, quando chegou em Balneário Camboriú (SC), o movimento não está ligado a uma religião específica, embora a maior parte dos eventos esteja vinculada a grandes denominações evangélicas. Para se tornar um legendário, os homens precisam passar 72 horas em uma montanha, sem contato com o mundo exterior, e superar desafios físicos e espirituais. Levar uma Bíblia é um requisito obrigatório. O objetivo é alcançar uma “nova relação” com Deus, com a promessa de que os participantes se tornarão melhores maridos e pais. O preço para subir a montanha como legendário custa em média R$ 1,5 mil, de acordo com a localidade. (Godoy, 2025)
Ao menos 17 cidades — inclusive as capitais Campo Grande, Cuiabá e Vitória — e dois estados — Mato Grosso e Paraná — já instituíram como lei o Dia dos Legendários, informou o Globo. E vejam só quantas cidades do RS já definiram por lei essa data: Santa Rosa, Carazinho, Erechim e Ijuí.
Então, queridos e queridas, o que podemos fazer diante desse cenário estarrecedor? Ouso dar algumas sugestões. Primeiro, se você conhece mulheres que você suspeita que estão correndo risco, não as julgue. Acolha amigas, familiares que estejam em uma situação delicada. A sociedade precisa reagir e exigir medidas dos governos estaduais e federal para instituírem medidas de segurança, como casas de convivência. O assunto é muito sério para ser ignorado.
Também não podemos esquecer que tudo isso faz parte da energia que está circulando no ambiente. Se as pessoas tivessem suas vidas com mais contato com a natureza, mais serenidade, fé e espiritualidade, creio que não haveria tanto absurdo rolando. Encerro pedindo para que o Papa Francisco nos abençoe de onde estiver, para que os machos metidos a alfa parem de perturbar essas mulheres, que têm a estranha mania de ter fé na vida, como já cantou o Milton.
O que o jornalismo levanta precisa ser investigado pela polícia, pesquisado pela academia e pelos órgãos responsáveis para que medidas sejam tomadas tanto por governos, pelos parlamentos e pela justiça para frear esse insulto às mulheres, às crianças e ao futuro.
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Foto da Capa: Reprodução Redes Sociais