Nas últimas semanas, o podcast A Mulher da Casa Abandonada, apresentado pelo jornalista Chico Felitti, tornou-se um fenômeno de popularidade no Brasil.
Com uma narrativa que se filia ao gênero queridinho do momento, o ubíquo “true crime”, o podcast de investigação jornalística produzido pelo jornal Folha de S. Paulo caiu no gosto de influencers do Tik Tok – o que ajuda a explicar um pouco o hype das redes sociais e a romaria de curiosos que têm se deslocado para Higienópolis para espiar a casa abandonada.
A série conta a história real de Margarida Bonetti, uma mulher que vive em uma mansão em ruínas no bairro Higienópolis, em São Paulo. Além de excêntrica, a personagem guarda um segredo: durante o período de mais ou menos 20 anos em que morou com a família nos Estados Unidos, Bonetti manteve uma empregada brasileira em regime de trabalho análogo à escravidão. Quando o caso veio à tona, no final dos anos 1990, ela fugiu para o Brasil. Enquanto seu ex-marido foi processado e preso pela Justiça americana, a mulher da casa abandonada nunca pagou pelos crimes que cometeu.
Além da empregada explorada por Margarida Bonetti e sua família, o podcast relembrou o episódio recente de Madalena Santiago da Silva, resgatada na Bahia depois de trabalhar dos oito aos 62 anos sem receber salário ou frequentar a escola. Os dois casos são parecidos não apenas pela desumanização a que as vítimas foram submetidas, mas por terem permanecido invisíveis durante tanto tempo.
Quando crimes desse tipo vêm a público, em cidades grandes e em meio a famílias de classe média ou classe média alta, podemos adotar dois tipos de atitude. 1) Acreditar que se tratam de casos raros, isolados, associados a algum tipo de psicopatia. 2) Reconhecer nesses extremos as manifestações mais desconfortáveis de um tipo de mentalidade que não é rara nem isolada no Brasil.
Não conheço (acho) alguém que mantenha uma pessoa em casa “como se fosse da família”, sem direito a folgar com regularidade, tirar férias ou acordar sabendo quantas horas vai trabalhar naquele dia – embora arranjos como esse fossem relativamente comuns até pouco tempo atrás. Conheci, isso sim, alguns homens que perderam a virgindade com a empregada da casa dos pais – iniciação doméstica que acontecia com certa frequência até os anos 1970, pelo menos. Muita coisa mudou nos últimos 50 anos, é verdade, mas certas dinâmicas sociais não evaporam de uma hora para outra.
Tratar a empregada como um agregado de segunda categoria da casa, e não como alguém que está prestando um serviço, é um cacoete tão natural da família brasileira que muita gente foi contra a aprovação da lei de 2015 que regulamentou os direitos do trabalhador doméstico. Diante da crueldade de Margarida Bonetti e do marido com relação à mulher que eles levaram para os Estados Unidos, a dificuldade dos patrões da classe média brasileira para estabelecer relações profissionais com direitos e deveres com suas empregadas pode parecer até inocente, mas a madame sinhá com nostalgias de senzala que desumaniza a empregada não brota do acaso, mas de uma cultura que naturaliza o fato de algumas pessoas terem todos os direitos e outras não terem nenhum. Aquele tipo de anúncio de emprego que exige praticamente tudo (carteira de motorista, folga quinzenal, não ter filhos, dormir no emprego, cozinhar, fazer toda a limpeza…) em troca de quase nada é a melhor ilustração desse tipo de mentalidade.
No fundo, a madame sinhá de 2022 acredita que está prestando um grande favor para a empregada. Em um país tão pobre e desigual, o simples fato de morar em uma casa (mesmo que em um quarto sem janelas) e comer três vezes por dia (mesmo que não à vontade) é visto como um privilégio. Daí para começar a acreditar que pagar salário é quase um exagero não é um salto tão improvável assim.