Fui uma adolescente dos anos 80. Naquele período Madonna foi a inconteste Rainha do Pop. Sob ela dancei em Porto Alegre nas pistas do Ocidente, Porto de Elis, Looking Glass, Taj Mahal… E fui influenciada pelo seu comportamento ousado, alegre, afrontoso, sensual, libertário. Desde o início ela quebrou barreiras falando nas suas músicas sobre erotismo, sexualidade, sem medo de mostrar na vida real suas forças e fraquezas, sempre afirmando suas vontades e sendo protagonista da sua história. Levantou bandeiras importantes e pioneiras na época, como os direitos das pessoas LGBTQIAPN+ e das portadoras de HIV/Aids.
Em razão da campanha “Feito de Futuro”, por conta dos 100 anos comemorados pelo Itaú em 2024, com o objetivo de inspirar as pessoas a honrar a importância do tempo, legado e longevidade, o banco contratou Madonna para ser a estrela máxima de sua campanha, do qual também fazem parte Fernanda Montenegro, Ronaldo Nazário, Jorge Ben Jor, Marta e Ingrid Silva (filme com todos eles, aqui). Nele, com total liberdade criativa, conforme divulgado pelo Itaú para a imprensa, ela faz um Manifesto ao mundo sobre si mesma e sua carreira, num período em que se escutam contestações quanto ao seu legado, sua beleza, sua importância no mundo da música atual, seu comportamento, sua contemporaneidade. E seu vídeo causou muito burburinho. Ela “causa” nele. Está divina. E faz afirmações poderosas.
Tratarei aqui sobre o que é da minha competência. Escutei que a mensagem da Madonna teria um conteúdo não idadista (ou não etarista), quando na minha análise é justamente o oposto.
No entanto, te peço licença para esclarecer e alinhar contigo alguns conceitos que usarei mais à frente para garantir que estaremos juntos nessa leitura. Combinado?
O que é Idadismo
Idadismo – etarismo e ageísmo são palavras sinônimas – surge quando utilizamos a idade para categorizar, dividir, julgar, discriminar as pessoas, de maneira a levar a perda, desvantagem, injustiças e conflitos. Ele possui três dimensões: estereótipos, preconceitos e discriminação. Três níveis de manifestação: institucional, interpessoal e contra si próprio. Duas formas de expressão: explícito e implícito. Se quiser ler mais a respeito, aqui o link para o Resumo Executivo para o Relatório Mundial sobre o Idadismo da OMS
O que é Feminismo
Em essência, o feminismo defende a igualdade de direitos entre os gêneros e a manutenção de direitos já conquistados pelas mulheres, levantando pautas que giram em torno das desigualdades: acesso à educação, pobreza e dignidade menstrual, violência doméstica, violência obstetrícia, feminicídio, desigualdade salarial, objetificação de mulheres, segurança pública etc…. (leia mais aqui)
O que é Machismo
O machismo é um preconceito, expresso por opiniões e atitudes, que se opõe à igualdade de direitos entre os gêneros, favorecendo o gênero masculino em detrimento ao feminino. Ou seja, é uma opressão, nas suas mais diversas formas, das mulheres feita pelos homens. Na prática, uma pessoa machista é aquela que acredita que homens e mulheres têm papéis distintos na sociedade, que a mulher não pode ou não deve se portar e ter os mesmo direitos de um homem ou que julga a mulher como inferior ao homem em aspectos físicos, intelectuais e sociais.(leia mais aqui)
Agora que nos alinhamos com relação aos significados desses conceitos, vamos adiante!
Sobre a Madonna
Reconheço a Madonna como artista que promoveu causas feministas em diversas oportunidades da sua carreira (leia aqui) e que, sem se dizer feminista, se colocou em pé de igualdade com os homens e mostrou o caminho para muitas mulheres de que é possível “chegar lá” sem se deixar intimidar pelo mundo masculino.
Onde está a Madonna anti-idadista? Em favor da longevidade, em especial das mulheres mais velhas? Fui em busca disso no discurso dela. Pois a fala revela as nossas crenças e valores e, como declarou Julian Barnard, “o que preenche a mente, tende a preencher a vida”.
Vamos ao Manifesto!
Analisando o Manifesto publicado na sua conta de Instagram, imagino que ela seja uma não etarista em formação… vem comigo?
Me chamam de Rainha do Pop. Eu sei que é um elogio, mas a monarquia está no passado, eu não.
E onde ficam todas as outras artistas que vieram depois dela e foram consideradas Rainhas, como ela? Aqui o sentimento que tive foi de desconsideração a elas, mesmo que muitas a tenham considerado uma influência nas suas carreiras. Um dos mais importantes papeis dos mais velhos é a sabedoria, o exemplo, o aconselhamento aos mais novos, a transmissão dos seus conhecimentos. Onde está, então, a consciência do legado para as novas gerações?
Eu não tenho idade, eu tenho todas as idades.
A Madonna tem 65 anos. Eu tenho 57 anos. Minha idade me define. Se tivesse cinco anos com certeza meu entendimento de mundo seria diferente do que se tivesse 70, 90 ou 25. Por causa da minha história e contexto de mundo aos 57 anos sou quem sou. Você é você por conta da história que viveu até aqui. O que viverá a partir de hoje pode redefinir sua vida. Eu tenho a infância, a adolescência, a juventude que vivi guardadas em mim, mas não sou aquela criança ou adolescente ou jovem. Elas cresceram, amadureceram, envelheceram e se tornaram essa mulher de 57 anos. Será que a Madonna entendeu isso?
Não é sobre quem eu sou, é sobre quantas eu sou.
Essa é a Madonna que defende o protagonismo e a liberdade de ser quem se é que conhecemos desde sempre. Como dizia nosso poeta Raul Seixas “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Inquieta, desacomodada, ousada, livre, sexy, seja lá o que e quando bem quiser. Nesse sentido, é uma afirmação não etarista, pois essa é uma declaração altamente transgressora em se tratando de uma mulher de 65 anos, para quem em geral a sociedade olha como um ser feio, assexuado, ultrapassado.
Conte minhas conquistas, não o número de anos que vivi neste Planeta.
Dividiria essa frase em duas partes:
Na primeira, “Conte minhas conquistas”, ela solicita que lembremos suas realizações, chama para um não apagamento de seus feitos. Lembrem! Nesse mundo de conquistas efêmeras e consumo programado, ela – afinal – foi e sempre será A Rainha do Pop! Aqui, me fez lembrar de muitas pessoas 45+ que mesmo capazes, com currículos sólidos e conquistas, são recusadas por empresas e acabam apagadas pelo mercado de trabalho idadista, preteridas pelos mais novos. Será que é assim que é nesse sentido que ela fala? Assim, concordo que pessoas mais velhas precisam ser reconhecidas nas suas potencialidades e percebidas nas suas capacidades, valorizadas pelas suas histórias e iluminadas por elas.
Na segunda, “Conte…não o número de anos que vivi neste Planeta” me veio a dificuldade que talvez ela esteja vivendo e que acima deixa entrever com relação ao seu envelhecimento e de contar o tempo em anos. Afinal, sempre ter sido considerada bonita, desejável, sexy e, com o envelhecimento, perder esses valores no “mercado” por conta do idadismo e machismo, algo que ela sempre combateu, não é fácil para ninguém. Por que seria pra Madonna? E aí entra o idadismo contra si mesmo e o tanto que a gente precisa trabalhar internamente a naturalização do envelhecimento, porque não existe rejuvenescimento. Nem pra Madonna.
Eu estou sempre me reinventando, assim me mantenho sendo eu mesma.
Absoluta verdade! Não sou especialista em Madonna, mas mesmo eu sei que ela é uma artista que nunca se acomodou e sempre se manteve fiel a inquietude.
“Eu estou sempre me reinventando…”. Um convite para autoanálise sobre como estamos encarando nossas vidas. Começamos a envelhecer a partir do momento que nascemos. Reinventando-se, atenta/o as necessidades a cada fase da vida. Podando galhos, colhendo frutos e deixando as folhas velhas caírem, mantendo as raízes firmes, fiel aos nossos valores e princípios.
“…, assim me mantenho sendo eu mesma” vejo como um chamado para pensar sobre o que é “ser eu mesma”. Espero que a Madonna saiba. Mas você sabe o que é ser você mesma/o ou o que você sabe é ser alguém para agradar quem mais gosta?
Penso que a coisa mais controversa que já fiz foi conseguir me manter. Já vi muitas estrelas surgirem e desaparecerem, como estrelas cadentes. Mas minha vida nunca desapareceu.
A longeva carreira da Madonna confirma sua afirmação. Ela pode ter tido período de mais ou menos sucesso, mas ela sempre foi relevante e causou impacto. Ela é Madonna. Tenho certeza de que sua história não irá desaparecer, diferente de tantas, mas novamente sinto falta de referência às novas gerações. Seria uma dificuldade de lidar com o seu legado para uma série de sucessoras e que ainda inspira outros tantos artistas, não só na área da música?
Nem todo mundo vem do futuro, mas eu sim. Eu continuo hoje, amanhã, daqui a 100 anos. Nós somos feitos no futuro
Cadê o passado? Fala de um hoje e de um futuro, omitindo o passado e sem honrar a ancestralidade. Então, se não reverencia o tempo vivido, experienciado e aprendido como falar em não etarismo?
Ninguém é perfeito. Mesmo eu, que lido diariamente com esses temas, me percebo em “pecado” vez e outra, então meu intento aqui é refletir contigo usando a Madonna e seu discurso supostamente anti-idadista, mas que aparenta medo, negação, tristeza e raiva, pra gente ir evoluindo. Se acontece com a Madonna, conosco também. Conforme estudos da OMS, uma em cada duas pessoas no mundo são idadistas com relação a pessoas idosas no mundo. Então, há razão concreta para temer sofrer discriminação. O que vai diferenciar as pessoas é a coragem. Coragem, velhice e felicidade. Topa?
Obrigada a professora Vera Santos pela colaboração na tradução da mensagem da Madonna.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube