Não lembro do início da relação com a minha mãe, por isso eu posso poetizar com outras vidas e/ou o conforto do útero.
Das outras vidas eu não me lembro, mas, no útero, nossa amizade começou cedo com a Malzbier da Antártica e aquele cigarro Charm da caixa dourada. Diziam que a Malzbier fazia bem pras grávidas, enquanto se parava de fumar alguns minutos antes do parto. Até consigo me imaginar sentindo aquele brilho, deitadinho no útero, com as perninhas cruzadas, como se fosse uma rede, tomando uma cervejinha pelo cordão umbilical e pitando um crivo. Tempos mansos.
“- Ain, que horror, fumar e beber grávida!?!?”.
– Vá pentear macaco!
Os anos 70 tinham suas próprias regras e, se não sabíamos que fazia mal, então não fazia mal; nossa ignorância era nosso escudo!
Falando nos anos 70, quando eu tinha dor de ouvido a mãe colocava azeite de oliva numa colher de chá, esquentava no fogão e despejava no meu ouvido. Que sensação gostosa! Muito anos depois contei isso para minha otorrino que quase infartou. Mas comigo dava certo, então, assunto encerrado.
Funcionavam também as compressas de vinagre e sal grosso para dor de garganta, que se resumiam a uma frauda empapada desses ingredientes amarrada no pescoço antes de dormir. O cheiro de vinagre ficava de 02 a 03 dias no corpo e de 02 a 03 semanas na cama.
Geralmente passava a dor de garganta, até porque – se não passasse -, a Injeção de Benzetacil seria a próxima providência: Welcome to the Hell!
Invariavelmente o dia da Injeção de Benzetacil amanhecia nublado e lúgubre (isso que eu nem sabia o que significava ´lúgubre´ naquela época!). As enfermeiras que aplicavam essa injeção tinham trabalhado no DOPS e, com o abrandamento da ditadura, recorreram a outra atividade que lhes desse o prazer de fazer alguém sentir dor. Lembro do sorriso espaçoso delas me dizendo p.a.u.s.a.d.a.m.e.n.t.e: “- Olha, o Doutor receitou Benzetacil. Baixa a calça que vai ser na bunda!” (os olhinhos tremiam de prazer orgástico!). Olhando a parede, com as calças arreadas, podia ouvir aquela risada inaudível de bruxa enquanto a Vaca furava a tampa de borracha do vidrinho do Benzetacil e o aspirava para dentro da seringa. O algodão com álcool prenunciava que a hora havia chegado e, daí, o derradeiro sinal: “- Tu vais sentir uma picadinha”… PICADINHA O CARALHO! Aquela porra entrava queimando, e a desgraçada ainda fazia isso lentamente, se duvidar pintando as unhas e assistindo o Chacrinha, anulando qualquer tentativa de você manter a dignidade e não chorar.
A mãe me chamava e ainda me chama de Nego. Acho que meu biotipo de índio, perto de uma irmã de olhos e pele claras, foi o motivo do apelido. Mas de verdade nunca lembrei de perguntar pra ela.
Entre tantos outros lugares, nós moramos na rua Marechal Floriano, no Centro de Porto Alegre, em um prédio que você entrava por uma galeria que tinha saída tanto por essa rua, quanto pela Av. Borges de Medeiros, que era a avenida paralela a ela. No meu quarto tinha uma cama e um sofá vermelho, daqueles que abrem, e eu e a mãe ficávamos vendo a série Galeria do Terror de madrugada. Depois de algumas imagens assustadoras, uma voz tenebrosa anunciava: “Galeria do Terror”! Então entrava o apresentador de terno e gravata, em um ambiente escuro, entre quadros e esculturas. Cada estória de terror começava a partir de uma dessas obras. O pai trabalhava na compensação do Banco de madrugada, então era só eu e a mãe. Eu era a criança mais feliz do mundo por poder ver uma série de adultos com a minha mãe.
A mãe, além de legal, era fortona.
A certa altura moramos no apartamento 32 da Avenida André da Rocha, no centro de Porto Alegre. O apartamento era grande, ficava no terceiro andar e era de fundos, mas não tinha elevador, nem garagem. No último lance de degraus tinha um vaso como uma planta Comigo-Ninguém-Pode, que, acho, era do vizinho de porta do terceiro andar, do apartamento da frente, com umas folhas verdes grandes salpicadas de branco no meio. A mãe dizia que era venenosa e nada matava ela. Nunca soube se isso era verdade, porque naqueles tempos dizer que algo era venenoso podia ser uma tentativa de fazer a criança deixar aquilo em paz. No apartamento de baixo tinha um bêbado, que volta e meia gritava e quebrava o apartamento. Às vezes dava medo, outras era divertido. Sempre eu dava uma corridinha quando passava na frente da porta dele. O pai deixava o carro na rua da Cepal, que era uma loja de material escolar a umas duas quadras do apartamento.
Eu esperava a mãe acordado no dia do batuque do Pai Nelson, que ela ia ali no Cristal (ou perto dali se bem me lembro). É que ela trazia doce e pipoca. Dia de Cosme e Damião então era uma festa. Às vezes eu também ia com ela no batuque e aquelas imagens e roupas eram muitos legais. Gostava do moço de terno branco. O pai e a vó não gostavam muito que ela fosse, mas eu só tenho boas recordações.
Lá na André da Rocha eu tinha uns 10 anos e fiquei doente de novo, passando pela compressa de vinagre e Benzetacil sem melhoras. Médico vem, médico vai, a mãe chamou uma batuqueira para me dar um passe, e nada da doença ir embora. Cada visita que chegava lá em casa tinha uma receita infalível e minha mãe me entupiu com todas elas sem êxito. Chegou um dia que eu delirava de febre e ela me arrancou da cama, me enrolou no cobertor e desceu comigo no colo os 3 andares e assim foi até o carro que estava duas quadras de distância. O pai devia estar no trabalho. Com 10 anos eu já era alto, quase do tamanho da mãe, mesmo assim ela me carregou sem parar até o carro.
A mãe me levou para o Hospital Moinhos de Vento. Os médicos acharam que era Meningite e programaram a retirada de líquido da coluna para ver. A mãe me prometeu uma caixa de Playmobil se seu não chorasse nem fizesse escândalo. Deu tudo certo: não era meningite, nem eu chorei! O problema é que depois do exame eu não conseguia mais andar. A mãe ficava comigo o tempo todo no hospital e coordenava com o pai pra trazer cachorro-quente do Ribs que ficava em uma praça na Avenida 24 de Outubro, perto do Hospital. Era legal beber suco e Coca-Cola na borracha de soro transparente vendo o líquido fazer curvas e mais curvas até chegar na minha boca. No final deu tudo certo, passou a febre e eu voltei a caminhar.
A mãe também era diferentona.
Uma das tantas escolas que eu estudei foi a Rio de Janeiro, que fica no centro de Porto Alegre, perto da André da Rocha. Eu saía do apartamento, pegava uma rua perpendicular, atravessava um estacionamento que ficava na Rua Avaí, a Perimetral e – voilà – o colégio. A escola tinha uma entrada por uma ruela que saía na perimetral e outra pela rua Lima Silva. Um dia a mãe viu no Jornal Nacional que o aluno poderia deixar de assistir aula de religião se não fosse católico, sendo que nessa época a isso se resumia a cadeira. Perguntou se eu queria parar de assistir e, depois de eu responder sim, ela foi na escola exigir meus direitos. Foi um barraco, já que ninguém tinha ouvido falar da tal lei, fiquei sentado tentando me fazer de invisível enquanto o pau torava. A mãe dizia que só tinha me batizado e tudo que viesse depois disso caberia a mim decidir, por isso não admitia que me obrigassem a assistir religião. Depois de toda a sorte de ameaças, e passadas duas semanas, eu estava dispensado da aula! Claro que a direção não deixou barato, eu ficava sentado no pátio sozinho durante as aulas, com o colégio me olhando pelas janelas.
Hoje fico perplexo (e agradecido!) com a liberdade que a mãe me dava, pois antes de ir caminhando sozinho para a Rio de Janeiro, eu, com 6 anos, já ia para a escola Sévigné, que fica na Rua Duque de Caxias. Ela me dava Cr$ 5,00 (cinco cruzeiros), que era uma nota azul muito bonita, e eu saía pela André da Rocha, subia a escadaria, parava no botequinho para pegar uma batata-frita que tinha a cara de um menino de cabelo preto na embalagem, uma Coca-Cola de garrafa pequena (tinha de levar o casco) e seguia pro colégio. Mãe me levando e buscando do colégio é algo que não povoa minhas memórias.
Exemplo dessa leitura diferenciada da vida, foi também a minha mãe ter deixado eu ir de ônibus para Salvador com 15 anos. Minha namoradinha disse que iria passar o verão na capital baiana e me convidou. Falei para mãe que queria ir e ela tirou uma autorização de viagem no Juizado da Infância, conseguiu que uma amiga, que tinha salão de beleza em Salvador, me hospedasse e me desovou na rodoviária. Descobri às vésperas da viagem que o convite da minha então amada tinha sido por educação, pois certamente jamais imaginaria que eu iria. Ela me disse por telefone que não queria me encontrar lá porque já tinha outro ficante. Eu não ia perder a passagem, então fui sozinho, mas a isso é outra história.
A mãe era brava, muito brava.
Uma vez eu ia viajar e o pai me levaria para pegar o avião. Eles já eram separados e eu morava com a mãe. Fui na sexta pra casa dele, o avião sairia na segunda. No sábado soubemos que as Aerolíneas Argentinas tinham entrado em greve e a viagem sido cancelada. Não avisei a mãe e fiquei na casa do pai. Mas ela soube. No sábado, o pai me levou de volta. Lembro como se fosse hoje. Virei a chave, abri a porta e as minhas malas estavam na frente. Fui até o meu quarto e descobri que ele não existia mais, tinha virado uma sala de televisão. Ela nem se despediu. Coloquei os óculos azuis que tinha comprado para a viagem e chorando peguei as malas junto com o pai e as levamos para aquele Gol cinza quadrado que ele tinha. Ele dirigiu em silêncio da Glória até o Cristal. Eu chorei em silêncio nesse percurso por detrás dos óculos azuis. O pai nunca foi de fazer perguntas, nem de dar grandes demonstrações de afeto verbal, mas ele sempre estava lá. Foi a última vez que morei com a mãe. Não falei com ela entre os 16 e os 18 anos.
Tantas vezes eu pensei que ela poderia ter sido diferente. Então a vida adulta chegou, chegaram trabalho, casamentos, filhos, e tantas vezes me peguei sendo a minha mãe na sua falta de noção, na coragem e nas paixões, bem como nos seus ódios, ressentimentos e tristezas. Isso é simplesmente a vida. Obrigado, mãe.