No último dia 13 de agosto, completaram-se 28 anos da morte de Maria Escolástica da Conceição Nazaré – Mãe Menininha do Gantois. Esta mulher foi uma das mais conhecidas e respeitadas Iyalorixás (autoridade sacerdotal de matriz africana Yorubá) do Candomblé no Brasil.
Nesta data, Mãe Menininha estava no comando do terreiro Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê, conhecido como Gantois, localizado em Salvador (BA). Em suas mãos, o Gantois se tornou um dos mais conhecidos e respeitados terreiros do Brasil, e isso se deu pela liderança desta mulher negra que protagonizou a divulgação do candomblé como cultura afro-brasileira no início do século XX, mais precisamente nos anos 1930 e 1940. Ela o fez mesmo sabendo tudo que as religiosidades de matriz africana sofrem por conta da estrutura racista da sociedade brasileira: o preconceito e a discriminação, tornando os terreiros alvos de violência, perseguição, depredação e morte até hoje Mãe Menininha segue sendo reconhecida por sua personalidade apaziguadora, de resistência e de preservação dessa cultura tradicional neste contexto social.
O debate sobre intolerância religiosa, no entanto, começou a ganhar força no Brasil a partir dos anos 1980 e 1990. Antes disso, certamente houve práticas discriminatórias e perseguições religiosas, mas o termo “intolerância religiosa” não era amplamente utilizado, e essas questões eram, muitas vezes, invisibilizadas ou tratadas como problemas de “desordem pública” dos negros e das negras, ou como tratava Alberto Guerreiro Ramos, notório sociólogo e político brasileiro ao usar, de forma irônica, o termo “problemas dos negros”.
Foi somente na Constituição de 1988 que passou a existir a garantia de liberdade religiosa e a laicidade do Estado. Com ela, se estabeleceu um marco legal que reconhece a pluralidade religiosa do país, e isso abriu espaço para a discussão sobre os direitos entre todas as religiões. Ao mesmo tempo, percebe-se o crescimento da autodeclaração das pessoas vivenciadoras das religiões de matriz africana em todo o Brasil, e estas se pronunciam denunciando a opressão histórica por meio de associações civis de direitos humanos, lutando por liberdade e dignidade em viver suas tradições.
Também, paralelamente a estes dois movimentos, o político e o social partindo das comunidades negras em sua maioria, temos o surgimento e a expansão das igrejas neopentecostais no país. Este crescimento, principalmente a partir dos anos 1980, promoveu um aumento nas tensões entre as igrejas (católica e neopentecostais principalmente pelo domínio da hegemonia de fé), mas também destas com as outras religiões e, em especial, as neopentecostais que se dedicaram, neste processo, a demonizar as religiões de matriz africana de forma intensa.
A agenda pública das religiões de matriz africana, na década posterior, 1990, foi de mobilização em parceria com as organizações sociais, sistematizando a denúncia do que se denominou “intolerância religiosa” ao ponto que, em 1997, foi criada a Lei 9.459, alterando o Código Penal, que considera e penaliza a discriminação religiosa como crime, equiparando-a ao racismo, num nítido reconhecimento público de que havia um problema social a ser combatido. Assim, o termo intolerância religiosa foi e é amplamente usado nos contextos sociais.
O movimento negro organizado, principalmente os que têm a sólida presença do “povo de terreiro”, tensiona desde então o termo, afirmando que o que se reivindica não é tolerância e sim respeito à liberdade de fé e tradição, pois, em especial para as religiões de matriz africana, a violência é particularmente muito maior.
Em uma pesquisa de 2019, do site de notícias Brasil de Fato, sobre casos identificados no Disque 100 de ataques às religiões, os mais numerosos são contra as de matriz africana. Foram 61% dos casos, tendo em seguida 18% a espírita e 12% a católica e testemunhas de Jeová. As outras somaram menos de 10% de casos.
Já em levantamento publicado no portal UOL no primeiro semestre de 2024, houve a denúncia de que os casos passaram de 90% do total de ocorrências no ano de 2023, isto é, quase duas mil violações de terreiros, apontando o crescimento exacerbado de violência de cunho religioso no Brasil.
Esses dados provam que o racismo está intrínseco e promove esta anomalia social.
Também, como podemos distinguir intolerância religiosa é, em suma, a atitude de desrespeito, discriminação, hostilidade e/ou agressão contra pessoas ou grupos, justamente pelas suas crenças religiosas ou práticas de fé, e se manifesta principalmente quando alguém não aceita ou não respeita a diversidade religiosa, acreditando que apenas sua religião é válida, e outras crenças estão erradas ou são inferiores.
Já o racismo religioso, de forma teórica e prática, difere na afirmação de ser produto da combinação entre o preconceito racial e o religioso, sendo direcionado principalmente a grupos religiosos associados a determinadas etnias ou raças. Os dados citados acima demonstram o quanto a violência religiosa se entremeia com o racismo.
No caso do Brasil, o termo “racismo religioso” é frequente e mais usualmente utilizado para descrever a discriminação sofrida por religiões de matriz africana, justamente por conta de sua origem africana e de sua estética relacionada a cultura negra, ficando inseparável o preconceito contra a raça e contra os praticantes da “religião da raça”, por assim dizer, mesmo que os praticantes não sejam negros, mas que é uma manifestação carregada de identidade racial negra.
Vale lembrar que a desumanização e a estigmatização contra a negritude tenta histórica e sistematicamente inferiorizar as pessoas e se torna uma das mais poderosas ferramentas racistas quando inclui no discurso de barbárie, incivilidade e de ceita supersticiosa, demonizando as práticas religiosas, mesmo estas não tendo o diabo como referência, isso é, nas tradições de matriz africana não há a figura do diabo em seus cultos, liturgia e teologia.
Inseridas neste contexto estão a violência e a perseguição como formas de manifestação do racismo. Mediante ataques físicos, vandalismo de locais de culto, violência psicológica, perseguição legal e institucional, para lembrar dos casos de invasão pelos setores da segurança pública, por exemplo.
Portanto, fica no entendimento que o racismo religioso está frequentemente enraizado em um histórico de colonização, escravidão, opressão e marginalização. No Brasil, as religiões de matriz africana são perseguidas durante todos esses séculos desde que africanos foram sequestrados e para cá vieram e seus praticantes/descendentes são cotidianamente criminalizados, devido ao racismo, caracterizando assim uma violação de direito humano de vida e liberdade.
Desde 2007, a data de 21 de janeiro é marcada como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, por ser o dia em que uma outra Iyalorixá baiana, Mãe Gilda do Ilê Asé Abassá, morreu em decorrência de violentos atos direcionados ao seu terreiro em um jornal de uma igreja neopentecostal.
Um caso recente e de repercussão nacional pode afirmar e dar a dimensão sobre o assunto, como exemplo do tamanho da violência que estas lideranças sofrem ao pronunciar sua fé e lutar pela garantia dos seus direitos à vida, liberdade de culto e de território. Neste mês de agosto, completa um ano da morte da líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, Yalorixá e ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho (BA), Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete. Foi brutalmente assassinada dentro de sua casa na companhia dos netos, não se caracterizando como caso isolado.
Em Porto Alegre (RS), é também o dia municipal contra a intolerância religiosa e, desde 2007, portanto há 16 anos, acontece a Marcha Pela Vida e Liberdade Religiosa, que anualmente discute temas importantes sobre o universo do racismo e seus deletérios efeitos no Brasil que, em casos extremos, promovem a morte e a vulnerabilidade de muitas pessoas, majoritariamente mulheres, negras e periféricas. A Marcha, protagonizada pelo povo de terreiro, tenta agregar as outras expressões religiosas na discussão.
Através do racismo, perpetua-se uma marginalização social, excluindo pessoas por conta de sua raça e religião, promove-se exclusão social, reforçando estereótipos e perpetuando os ciclos de discriminação, dificultando a integração e o reconhecimento cultural de negras e negros. Assim, o racismo religioso é uma violação dos direitos fundamentais de liberdade de crença, igualdade racial e dignidade humana, que afeta profundamente tanto a liberdade religiosa quanto a dignidade racial das pessoas, perpetuando ciclos de preconceito e violência em sociedades como a brasileira.
Precisamos ininterruptamente discutir, assim como diuturnamente combater essa violência racial impetrada contra o povo de terreiro, assim como também abrir um sincero debate sobre a laicidade do Estado brasileiro. Somente assim poderemos efetivamente propiciar um estado que prima pela liberdade religiosa de sua população. Axé!
Nina Fola, mãe de Aretha e Malyck, é multiartista, socióloga, atuante nos coletivos @afroentes, @coletivoatinuke e @odaba.br. Aborda a questão de raça e gênero em todos os seus trabalhos acadêmicos, artísticos e profissionais. Gestora do @cavalodeideias, uma consultoria em diversidade e inclusão onde faz palestras e formações. (@ninafola)
Referências
O Pensamento Nacionalista, de Guerreiro Ramos. Em “Cadernos de nosso tempo". Câmara dos Deputados e Biblioteca do Pensamento Brasileiro, 1981, pp. 39-69.
Pesquisa de 2019 de casos no DISQUE 100.
Pesquisa UOL, em 2024.
Líder quilombola de Pitanga dos Palmares é executada na Bahia - Agência Brasil.
Foto da Capa: Acervo Terreiro do Gantois
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