Faz muito tempo que não me interessava por concursos de beleza, acho um pouco démodé e um tanto cafona, porém tenho de confessar que nem sempre tive esta opinião. Eu mesma já participei em um destes concursos quando era adolescente. Beleza é, desde sempre e apesar de tudo, uma coisa que mexe com nossa cabeça e autoestima.
Fomos condicionados a isto e seria muita hipocrisia simplesmente varrer baixo do tapete essa realidade para assumir uma posição politicamente correta ao afirmar que “beleza interior” é o que mais vale. Mexe com nossa cabeça e pronto! Se é certo ou errado, merece um outro ponto de análise, inclusive pela própria variação do que é belo em diferentes culturas e como este conceito vai se metamorfoseando no entendimento e na narrativa da história da humanidade.
O que é belo chama tanto a nossa atenção, que não foi por acaso que comecei escrevendo sobre beleza. E se você está lendo, é porque se interessa. Porém, o papo aqui vai além.
Os concursos de beleza subsistem. É fato. O Miss Universo, talvez o mais tradicional e importante deles, já passa de 70 edições. Longevo sim, mas sem o mesmo glamour e popularidade que já teve no passado, em um contexto social extremamente conservador. Muito pelo contrário, deu e dá sinais de desgaste, entretanto ainda faz bastante barulho e movimenta quantidades absurdas de dinheiro.
Desde o meu ponto de vista, aceitar sem nenhum questionamento um concurso que segue estereotipando a beleza e estimulando a objetificação dos corpos femininos é um pouco complicado, porém (aqui temos um PORÉM maiúsculo), recentemente o Miss Universo voltou a ter a simpatia de um público que, assim como eu, acredita que apesar de imperfeito, pode estar servindo como uma ferramenta para quebrar certos paradigmas.
O Miss Universo deixou estrategicamente para trás o modelo ultrapassado perpetuado durante décadas e há pouco tempo voltou aos holofotes. Não foi necessariamente pelo modelo de evento, e sim pelas mudanças nas regras que condicionam a participação das candidatas.
A primeira edição do maior concurso de beleza feminina do mundo foi lá em 1952 e só mulheres solteiras, entre os 18 e os 28 anos e sem filhos podiam almejar a coroa. As mudanças, tão necessárias, demoraram a chegar, mas vieram. Em 2012 foi permitida a participação de mulheres transexuais. Em 2023 foram aceitas também mulheres casadas, divorciadas e grávidas, e para a próxima edição, em 2024, não haverá restrição de idade.
Um respiro de modernidade ou um ímpeto de sobrevivência? Não interessa tanto, afinal algo é algo. Funciona como uma lanterninha acesa no final deste túnel tão escuro de discriminação e intolerância que o mundo entrou e não sabe como sair.
Na última semana uma jovem de 28 anos ganhou as manchetes por ser a primeira mulher transgênero a participar e vencer a etapa do concurso aqui em Portugal. Marina Machete vai representar o país no Miss Universo em El Salvador no próximo mês. Ela venceu e fez história em um país reconhecidamente conservador em muitos aspectos, contudo está longe de vencer o preconceito.
Marina deu várias declarações depois que foi coroada. Falou sobre autoestima, superação e apoio, mas também sobre transfobia e intolerância. É inegável que há sinais de progresso por todo o mundo, porém a discriminação e a exclusão devido à orientação sexual e à identidade de gênero persistem, seja na família, nos espaços públicos, nas escolas, na saúde, nos empregos. Não é um concurso de beleza que irá mudar essa realidade. Ajuda, mas ainda falta muito. Falta especialmente empatia.
“Gosto das mãos delicadas”, “Parabéns pelo feito rapaz”, “Não nasceu Miss, nasceu Mister”, “É um homem vestido de mulher”. Estas são algumas das reações sobre a vitória de Marina, especialmente nas redes sociais. Acreditem, há ainda muitos outros comentários carregados de ódio, preconceito e ironia, ao lado de opiniões sexistas como “aqui está a prova de que mulheres precisam dos homens para tudo, até para ganharem concursos” ou “os homens são tão bons que ganham as mulheres na sua própria categoria”.
O paradoxo desta vitória é que traz, lado a lado, a alegria pela conquista do título por uma portuguesa e a negação da identidade desta mulher eleita, escancarada nas reações de uma parte da sociedade que teima em não evoluir.
Agradando ou não, Marina Machete, Miss Portugal, e Rikkie Valerie, Miss Holanda, ambas mulheres trans, vão estar juntas na edição Miss Universo deste ano. Antes delas, a única miss transgênero a se classificar foi a espanhola Angela Ponce, em 2018. Todas foram igualmente atacadas, como são atacadas e discriminadas
diariamente mulheres como Marina, Rikkie e Angela em todo o mundo.
O último relatório do Observatório da Discriminação contra Pessoas LGBTQIA , da associação ILGA Portugal, revela que foram feitas 469 denúncias entre 2020 e 2022. Destas, mais da metade relativas a incidentes de ódio. Portugal voltou a cair no ranking dos países europeus quanto aos direitos das pessoas LGBTQIA . Ocupa agora a décima primeira posição.
O Brasil, por sua vez, é o país que mais mata transexuais no mundo pelo 14º ano consecutivo, de acordo com o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Somente em 2022, de acordo com o informe, foram assassinadas 131 pessoas trans. Dados que causam ao mesmo tempo perplexidade e repulsa, mas que estimulam o debate e à necessidade de mais políticas públicas de proteção para estas pessoas.
O que nós enquanto sociedade podemos aprender com a Miss Marina? Muito e pouco. Não há uma resposta simplista e única.
Muito, se estamos abertos para a vida e comemoramos com ela o simbolismo de ter mulheres trans coroadas em meio a tantas outras mulheres, sublinhando desta forma uma muito bem-vinda inclusão.
Pouco, se olharmos para estes feitos como algo que nos agride enquanto pessoas entregues aos padrões decadentes de uma sociedade que se (re)afirma em uma “normalidade” que não existe.
Somos todos normais nas nossas individualidades.
E antes de terminar e descer da passarela quero colocar uma frase mais.
“Mãe, quero ser jogadora de futebol!”
Neste campo já conseguimos avançar mais um pouquinho.