Boa tarde, Doutor Marcos, tudo bem com o senhor?
Soube que o senhor é um grande defensor dos direitos dos Autistas
Sou mãe atípica, meu filho tem 8 anos é TEA e tem outras comorbidades. Eu não estou conseguindo os tratamentos dele da forma como a médica solicitou. O senhor poderia me ajudar? Me orientar? Eu estou desesperada porque ele está sem terapias…
Recebi essa mensagem há algumas semanas, algo que se tornou bastante comum desde que tornei público o meu envolvimento com o autismo e os direitos dos autistas. São pedidos de orientação para acessar direitos ou benefícios legais de pessoas que não sabem a quem recorrer. Mas, também, testemunhos do desespero causado pela falta de amparo, pela falta de uma rede de apoio familiar ou social.
Sentimentos que são compartilhados pela remetente dessas mensagens que conta: sou uma mãe solo que sofre todos os dias calada, sem sequer uma rede de apoio, moro sozinha com ele, nem direito a adoecer eu tenho.
Ela se diz escrachada, humilhada, perdida e que se sente sem saída. Na última mensagem, revelou uma tentativa de suicídio da qual está se recuperando.
Essa última mensagem teve um peso forte para mim, pois a recebi justamente no Setembro Amarelo, o mês de conscientização sobre a prevenção do suicídio, tema ainda cercado de tabus e estigmas. A campanha realiza uma série de eventos com o objetivo de promover um diálogo aberto sobre saúde mental e encorajar aqueles que enfrentam crises a buscar ajuda. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o Brasil registra uma média alarmante de 32 suicídios por dia, superando a incidência de doenças como AIDS e câncer.
O tema foi assunto da coluna “Não era tristeza, era depressão”, de Pat Storni, publicada aqui na Sler. Nela, conta sua experiência pessoal e nos alerta sobre a complexa e mal compreendida relação entre suicídio e depressão e o quanto o silêncio sobre uma doença comumente confundida com tristeza pode levar a consequências devastadoras. A falta de compreensão sobre os sintomas da depressão e a pressão social para “superar” a dor podem atrasar a busca por tratamento, agravando a situação. É essencial falar sobre saúde mental para salvar vidas.
A depressão atinge em cheio as mães de crianças autistas. Débora Saueressig, mãe atípica, jornalista e ativista, menciona estudo da Universidade da Califórnia no qual 50% das mães de crianças autistas apresentavam altos níveis de sintomas depressivos ao longo de 18 meses. Em contraste, apenas 6% a 13% das mães de crianças com desenvolvimento típico mostraram níveis semelhantes de depressão, evidenciando a gravidade do impacto emocional enfrentado por essas mães.
Em um estudo semelhante, realizado pela UFRGS, Carlo Schmidt e Cleonice Bosa constataram que 70% das mães de autistas apresentaram altos níveis de estresse. Entre as principais causas estão o isolamento social e a escassez de apoio social. Os pesquisadores também observaram que a falta de apoio conjugal pode contribuir para o incremento dos sentimentos de solidão e desamparo maternos. Esta situação tende a causar o aumento dos níveis de estresse parental, impactando na saúde mental de pais e filhos.
Essa situação leva Débora a afirmar:
Os inúmeros dados, pesquisas e estudos não deixam dúvidas: estamos adoecidas mental, física e emocionalmente. Nós, mães de crianças atípicas. E isso tem impactos familiares, lógico, mas também sociais, culturais e econômicos.
Débora aponta o dedo para os responsáveis pelo adoecimento das mães de crianças ATÍPICAS: médicos, profissionais de Saúde, planos de saúde, escolas e o Estado, que demora em cumprir seus deveres e carece de políticas públicas para enfrentar os problemas enfrentados por essas mulheres. Como ela conclui:
O que adoece as mães das crianças ATÍPICAS não são os filhos, é o sistema.
Todos os braços e tentáculos do sistema falharam com uma mulher anônima e seu filho, um menino autista de 12 anos e aluno de uma escola na Asa Sul, em Brasília. Moradores de um prédio vizinho filmaram mãe e filho ao ouvir os gritos do adolescente, caído na calçada, sendo puxado pela mãe e agredido com tapas na cabeça, rosto e braço.
A Secretaria de Educação do Distrito Federal informou que, alertados, os funcionários da escola conduziram os dois para dentro do estabelecimento e ambos estavam bastante alterados e chorando muito.
Sinto uma dor infinita ao ver essa mãe e filhos sendo expostos dessa forma nos meios de comunicação e sendo julgados sem compaixão pelo chamado tribunal da Internet que condena um ou outro por esse incidente lamentável. Não consigo deixar de pensar nessa mãe, quase certamente adoecida por um sistema que a segrega, excluí e silencia, levando ao sofrimento psíquico, provável causa de suas atitudes violentas. Quantas culpas será que ela carrega?
Agora, com sua exposição pública, podemos anotar mais uma dívida em seu caderninho, que parece aumentar cada vez mais até se tornar impagável. Débitos que sufocam e que vão, lentamente, engolindo a sanidade mental dela, pedaço a pedaço. O preço a ser pago é o estresse, a ansiedade e a depressão.
Na milésima vez em que a mãe é chamada à escola para discutir seu filho, explode em frustração e violência, mas não contra o médico que a ignora ou a família que não a apoia. Não é possível agredir um sistema tão perverso quanto impessoal. A pressão se volta contra o mais vulnerável: o menino autista de 12 anos.
Ao mesmo tempo, sofro por essa criança que passa seus dias em um ambiente estranho e ameaçador, pois é assim que muitos autistas veem a escola. De casa para a escola e vice-versa, em um ciclo em que não encontra amparo e acolhimento. Será que essa criança entende o que esperam dela no ambiente escolar? Será que essa criança se sente protegida em algum lugar?
A resposta quase certamente será um não. Ela não compreende como deve se comportar na escola e, tampouco, porque está apanhando de sua mãe. A pessoa que a protege também é quem a agride. Ainda que seja a primeira agressão que ela sofreu, como entender isso? Você que está lendo conseguiria explicar isso para ele?
Embora eu não saiba o que realmente aconteceu no dia 24 de setembro, naquela calçada de Brasília em que uma criança foi agredida por sua própria mãe, minha experiência de vida me mostra que dificilmente fugirá desse roteiro que escrevi aqui. Também não duvido ambos estarem presos em um ciclo de solidão e desamparo, de frustrações que não encontram palavras para se expressar. Exaustos, desabam em um choro que posso ouvir daqui onde estou.
O sofrimento que nós, como sociedade, infligimos a essas mães e seus filhos e filhas não pode ser ignorado. Se o setembro amarelo é uma oportunidade para falarmos disso, os outros onze meses do ano não podem ser uma desculpa para nos calarmos. Mas não basta falar, é preciso agir. É preciso desmantelar esse sistema adoecedor e excludente. Se não colocarmos em seu lugar uma cultura de cuidado, não haverá setembro amarelo que dê conta de tantas mazelas.
Vamos conversar sobre isso?
Foto da Capa: Freepik
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